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    Camila Scarpati Dias
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Primeiramente gostaria de agradecer ao convite para participar desse espaço Psicanálise e Arte, dois significantes que tenho imenso carinho. Se a humanidade passou séculos sem a psicanálise – posto que essa foi criada por Freud – sem arte, nós nunca ficamos. A nossa constituição como ser humano e diferenciação dos outros animais com quem compartilhamos o mundo passa por nos inclinarmos a registrar, a desenhar, diferenciar os sons que emitíamos até que fosse possível fazermos a coisa quase mágica de transformá-los em símbolos que viram letras, que viram palavras e dos quais fazemos tanto uso.


A partir desse furo narcísico que a História nos faz, ao lembrar que somos poeira num universo muito mais amplo de espaço e tempo do que nossos olhos alcançam, digo que ousei vir aqui falar de arte, e do quanto assim como tudo nessa vida, ela não está alheia aos efeitos de cada época.


Lacan colocou em seus escritos, e nós repetimos a exaustão, a importância de que analista alcance em seu horizonte a subjetividade de sua época. Um dos significantes que menos levantam-se questões nessa frase é HORIZONTE, e talvez aí esteja justamente a delicadeza que ele nos entrega.


O horizonte é onde enxergamos mas não chegamos.


Pode parecer simples, mas é cada vez mais difícil de sustentar o lugar de não chegar, de não mergulhar nas militâncias pró ou contra algo. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud nos diz do quanto os afetos possuem esse nome por algum motivo. Por nos afetarem.


E a arte certamente não escapa disso. Muito pelo contrário.


Não existe arte sem contexto, porque não existe arte sem artista, e nem artista sem sujeito e nem sujeito sem um tempo. E então chego ao nosso tempo, e na arte que vou percebendo ser produzida e as questões que me fazem. E aqui destaco que são questões e enquanto questões espero que por muito tempo permaneçam, afinal, Lacan também nos adverte no Seminário 6 sobre não compreendermos rápido demais.


Em 1922 alguns lançaram um manifesto antropofágico, reunindo artistas de diversas áreas — literatura, música, artes plásticas e arquitetura — com o objetivo de romper os padrões estéticos acadêmicos e valorizar uma arte genuinamente nacional. De imediato ridicularizado pelos estudiosos da época. Durante a leitura do poema "Os Sapos", de Manuel Bandeira — texto que apresenta uma crítica contundente à poesia parnasiana e ao rigor métrico —, Ronald de Carvalho enfrentou manifestações de desaprovação por parte do público, que interrompeu sua apresentação. Reações semelhantes ocorreram durante as intervenções de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. No campo das artes visuais, Anita Malfatti também foi alvo de hostilidade, encontrando bilhetes ofensivos afixados no verso de suas obras. O novo não vem sem uma dose de hostilidade.


Mas, uma questão já recorto daqui: em 1922, ao propor a antropofagia, se sabia que para o nacional vir, naquele ponto da história, algo era necessário pegar do outro, da Europa. Já se pensava necessário para desenvolver algo genuinamente novo trazer consigo algo de um tempo anterior.


Dias desses fiz o exercício de recolher entre meus livros aqueles que haviam sido escritos por autores negros, depois por mulheres, depois por autores não ocidentais. Não preciso dizer o quanto a predominância foi de autores homens, brancos, europeus. Freud e Lacan para começar a conversa, certo? Shakespeare, Dostoievski (com alguns minutos refletindo se seria a Rússia, quando Dostoievski escreveu (+-1850), suficientemente europeia rs) e por aí segue.

Proponho então hoje uma essa conversa sobre identidade, e por que essa discussão é relevante nesse espaço?


Enquanto arte, alguns movimentos são percebidos: um primeiro, de questionamento e (talvez essa palavra seja muito dura, mas não encontrei outra melhor) censura de obras a partir da biografia de seus autores ou de expressões utilizadas em suas obras, próprias daquela época. E um segundo movimento de criação de bolhas literárias, e aqui explico melhor de onde tirei essa expressão. Como disse ao fazer o exercício na minha própria estante, partindo da premissa de bolha já existente, pautada na branquitude masculina que por séculos foi quem majoritariamente estava por trás dos escritos e dando nome e rosto aos grandes movimentos sociais ocidentais. Mas o que chama atenção é que numa tentativa dialógica de fazer frente a isso vir de algo deliberado como: SÓ leio obras cujo autores tenham as características x, y, z. caminhando para um ponto de semelhança justamente a quem oprimia outrora, e às vezes correndo o risco de entrar em conflito entre os próprios grupos minorizados de diversas formas. Numa espécie de disputa de quem está mais a margem da sociedade.

O que vai ao encontro de Lacan em "só conheço uma única origem da fraternidade, é a segregação”  (LACAN, 1969/1970).


Ou ainda, surgem algumas fake news bem intencionadas e patrulhas linguísticas que, na prática, pouco contribuem para o avanço real dos direitos civis. Um exemplo: outro dia, minha mãe me corrigiu “filha, você falando isso?” ao ouvir a expressão “criado-mudo”. Ela mencionou uma história que leu, segundo a qual o móvel teria origem na prática de manter pessoas escravizadas ao lado da cama dos escravizadores durante a noite. Expliquei que essa versão não é historicamente plausível — afinal, não faria sentido colocar alguém escravizado em posição tão próxima ao escravizador dormindo vulnerável. Portanto, nesse caso específico, o uso da expressão não está necessariamente vinculado a esse tipo de violência.[1]


Por quais caminhos é possível que isso ocorra com a sabedoria da natureza onde os rios correm juntos até que se tornam outro, ao invés, do rio que quando se encontra com o mar produz ondas diante do impacto e ali se torna outra coisa que não rio?


Acho importante demarcar um ponto conceitual: vivemos num país e numa sociedade fruto de profundas questões sociais, como escravidão e machismo, em que por séculos foi colônia de exploração, como todos aprendemos durante o ensino fundamental. A ideia de democracia racial é uma falácia, que serve mais para silenciar o racismo do que para enfrentá-lo, mascarando relações de poder que permanecem desiguais.


Dito isso, o que fazer a partir daí? Quais caminhos tomar?

 

Percebem que aqui marco a questão do comum e do universal. Ainda que a história por vezes nos coloque como antagonistas, uns versus outros, e que as desigualdades sejam muitas, e de fato são, não se trata nessa história de rios e mares, águas doces e salgadas. Somos todos rios, com cursos e densidades diferentes, mas rios. Algo nos une, há um universal, e apenas a partir daí que alguma construção é possível.


O cientista político Yascha Mounk ao analisar as crises nas democracias liberais em todo mundo, afirma que


“E ao retratarem a sociedade como cheia de intolerantes que representam uma ameaça constante aos membros de todos os grupos minoritários concebíveis, encorajam cada vez mais pessoas a se sentirem perdidas em um mundo implacavelmente hostil.” (MOUNK, 2025, p. 369)


Mas acaba funcionando como um prato cheio para reacionários. Nessa hora a identidade entra como armadilha, usando a palavra que Yascha Mounk intitula seu livro.  Afinal,


“[identitarismos] oferecem a ilusão de que seremos plenamente reconhecidos em nossa singularidade enquanto nos reduzem a atores que leem roteiros simplistas sobre o que é ser homem ou mulher, pardo ou negro, gay ou heterossexual, cis ou trans”. (MOUNK, p. 370)


Ideia que vai de encontro a Psicanálise, que tem como tão caro o conceito de castração e incompletude, porque que trabalhamos por aqui com os desencontros, e a singularidade.


Será possível incluir, chamar para essa dança, sem tirar da pista os que já estavam ali? Apontar nas obras as expressões que hoje felizmente não cabem mais, mas mantê-las inclusive como registro deu tempo onde o que vigorava era aquilo? Afinal, não dado que é possível passar uma borracha na história sem deixar rasuras. Talvez seja melhor continuar a escrevê-la.

Dito algo sobre a arte, vamos a psicanálise.


Se a psicanálise é, para a gramática, um substantivo abstrato, psicanalista é substantivo concreto. São pessoas, sujeitos, que durante algumas horas do dia se propõem a exercer uma função. O pagamento ali, é o apagamento do sujeito para que o analista advenha, como aponta Lacan em Direção do Tratamento.


“Mas pagar também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência”. (LACAN, Direção do Tratamento, p. 593);


Emprestar é diferente de anular. A pessoa continua existindo fora dali e é ela quem que orienta a formação, não o analista enquanto função. Os textos que cada um se propõem a ler, a trabalhar, tudo isso diz de escolhas que cada um traz de sua história, dos caminhos e lugares por onde passou.


Ou nesse ponto do percurso alguém acha que alguma escolha de assunto para ler ou estudar é neutra ou fruto de um acaso? Se assim o fosse, qual seria o lugar do inconsciente?


E então chegamos a O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório, livro que alvo de censura em algumas escolas brasileiras devido ao seu conteúdo crítico sobre racismo e violência policial e ao narrar a ida de um de seus personagens a um analista, traz:


“Eles não faziam a mínima ideia de que a metade dos seus problemas estava contida na cor da pele, você pensou. Não diretamente, mas lá no fundo. Você sabia que tudo isso era mais complexo do que eles imaginavam. A psicanálise tinha cor e ela era branca, você pensou. E definitivamente havia coisas que escapavam a Freud.” (TENÓRIO, p. 35)


Por muitos anos a psicanálise foi algo, sim, elitizado. Freud propôs as clínicas públicas, mas convenhamos que é uma minoria da sociedade que tem a possibilidade de passar por uma experiência de análise, e assim como a formação de um analista é custosa em vários sentidos. Basta olharmos a nossa volta, e não percebemos a presença de muitas pessoas negras.


Toda área que se propõe a dialogar com outras deve estar disposta a receber críticas e questionamentos — isso faz parte da dinâmica de quem está comprometido com a construção de algo novo. É o que vemos em Freud e Lacan, que buscaram constantemente o diálogo e, ao se afastarem de seus lugares como médicos, e se inclinarem à clínica psicanalítica, inaugurando uma nova forma de escuta e intervenção.


Atualmente tem muita coisa nova sendo produzida e reconhecida por pares, e penso serem importantes nos inclinarmos a conhecer antes de marcar uma posição. Isildinha Batista Nogueira, por exemplo, traz seu livro cujo título é segundo ela uma provocação “A cor do inconsciente”, que ao contrário do que parece, não se propõem a falar que o inconsciente tem cor, mas que a cor da pele tem – sim - influência na constituição psíquica do sujeito. Nas palavras da autora o objetivo da obra é: “Investigar as formas pelas quais se dá, para o negro, no plano psíquico, a repercussão do racismo e da discriminação, e de que maneira tal repercussão que afeta o negro enquanto sujeito produz, para esse sujeito, configurações psíquicas peculiares” (NOGUEIRA, p. 36).


Vivemos em um profundamente marcado pela desigualdade social e que traz ainda hoje claros resquícios da escravidão que por séculos foi a base de nossa força de trabalho, que ainda hoje tem diferenças salarias importantes de acordo com o Ministério do Emprego e Trabalho[2] ou em relação a população carcerária, são mais de 70% com aumento ao longo dos anos[3]. Poderia seguir discorrendo de forma pragmática dados referentes ao lugar que ainda hoje pessoas negras ocupam em nosso país, ou sugerir que estejam atentos aos movimentos da cidade, a olhar para dentro do ônibus, uma produzida há vinte anos ou para a foto de uma turma de formandos de qualquer curso antes da implantação da política de cotas. Isso não é sem efeitos. E então, vamos a preciosidade que Tenório nos traz.


Trago um último recorte da obra de Jefferson Tenório, o único momento que ele usa a expressão que dá nome a sua obra “avesso”:


“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo.” (TENÓRIO, p. 65)


É justamente ali que uma análise se propõem a acessar: esse avesso, justamente o inconsciente estruturado enquanto linguagem, que está para além da pele. A psicanálise vai no oposto ao que seria limitar o sujeito a pele que o cobre. Trabalha-se com os significantes e a subjetividade que cada um traz, e o quanto em uma análise é possível percorrer a partir disso, e não apesar disso. Em uma análise não lamentamos o caminho, trabalhamos com ele. O que de forma alguma quer dizer que lidar com o avesso, o corpo psíquico, seja relevar a existência de uma pele que envolve o corpo físico e tudo que a envolve.


Lacan ao falar sobre o analista alcançar em seu horizonte a subjetividade da época, talvez estivesse falando sobre esse desafio de não mergulhar de cabeça onde não se sabe a profundidade. Um desafio e tanto em tempos que pressionam para posicionar-nos seja de defesa ou ataque a uma ideia, em uma temporalidade que ignora pausas e reflexões. Talvez estejamos no tempo mais de elaborar do que de concluir algo.


Quanto a arte, que a gente possa colher dela a diversidade que nos apresenta enfim, sem usar do que tanto criticamos há não tanto tempo assim, ao invés de adotarmos posturas casmurras no mundo, e como o Alferes de Machado nos colocarmos mais colados a identidade que criamos diante do espelho do que no que há em nosso avesso. Tomar o cuidado de não vaiar Mario de Andrade por falta de métrica.


Talvez eu seja uma otimista nata, que pensa que muitos tons são possíveis além da rigidez dos extremos, por caminhos que não sei bem ao certo como seriam trilhados.


E assim, correndo o risco de desagradar a gregos e troianos, em um tempo likes e curtidas são buscados, encerro esse texto, fruto de muita inquietação que compartilho agora com vocês e espero que encontre ressonância.


LACAN, J. Direção do tratamento e princípios de seu poder.

LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

MOUNK, Yascha. A armadilha da identidade: uma história das ideias e do poder em nosso tempo. 2024.

NOGUEIRA, I. B. A cor do inconsciente - significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021.

TENÓRIO, Jefferson. O Avesso da Pele - Jeferson Tenório.

 



 

Texto escrito por mim, Camila Scarpati Dias, e apresentado no Espaço Psicanálise e Arte, da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, em 27/06/2025.

A disponibilização dessas palavras faz parte de um exercício pessoal de compartilhar meus escritos ordinários, do dia a dia, no ponto em que estejam, sem revisões ou edições elaboradas. Apenas as palavras que consegui chegar para tentar chegar a algum lugar diferente de quando comecei a escrevê-las.

Talvez não sirvam para muita coisa, mas certamente me serviram para avançar e chegar a novos lugares.


 
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    Camila Scarpati Dias
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Boa noite a todos, venho hoje falar um pouco sobre o que tem me tocado nos estudos sobre a devastação, e especialmente a pergunta que fui construindo ao longo dos nossos encontros em Cartel: quais são os efeitos no corpo, na relação com os alimentos, dessa experiência (ou não) de

devastação, que se dá na relação entre a mãe e a filha?


Começo com que nos uniu a princípio: uma transferência de trabalho, embalada pelo filme “Sonata de Outono”, de Bergman. A partir daí nos debruçamos com nossas faltas sobre o que é a mulher? O que deseja? E como se dá isso que chamamos de feminino? Quais contornos vão se

dando na relação mãe e filha para que se forme ali uma mulher? As perguntas eram e continuam sendo muitas, mas algo vamos recolhendo pelo caminho.


Trazendo brevemente, quando falamos de sujeito, em psicanálise, falamos de um ser inserido no mundo da linguagem, e por ela, e para que essa inserção ocorra, se faz necessário a presença de um Outro. Em geral, quem ocupa esse lugar a priori é a mulher, na verdade, a mãe. O filhote de humano então vem ao mundo alienado ao desejo materno.


Em um primeiro tempo, a mãe tenta acertar o que é demandando a ela, enquanto a criança, faz o mesmo movimento, buscando manter-se ali no lugar de objeto (precioso) do desejo do desejo daquele sujeito, como nos diz Lacan no seminário 5. A relação que se estabelece então é linear,

entre um sujeito e um objeto.


O bebê se identifica especularmente com aquilo que é objeto de desejo de sua mãe. Mais adiante na formação do inconsciente, a figura do pai sai do campo do real e é pouco a pouco inserida no campo do simbólico, mediante convocação da mãe que é quem o instaura como aquele que porta a lei (LACAN, Sem. 5, p. 200). Assim, criança em lugar de objeto que outrora estava alienada ao desejo da mãe vai se deslocando rumo a um outro lugar. Lacan nos diz que “É a medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição paterna que o círculo não se fecha completamente em torno da criança e ela não se forma, pura e simplesmente, objeto do desejo da mãe”. (LACAN, Sem. 5, p. 210).


Se tudo correr como esperado, o caminho será esse. No entanto, me movimentei para o outro lado dessa história, onde me coloquei a pensar quais efeitos desse caminho, se não houver uma barreira, a existência de uma figura outra que separe essa criança do lugar de objeto do desejo da mãe, a auxiliando a sair de um lugar onde tudo que é almejado é ser desejo de desejo daquela mãe, devoradora.


E nesse ponto entra o caminho que trilhei, sobre os efeitos no corpo, na alimentação, que flerta com as questões como os transtornos de percepção corporal e anorexia, como uma manifestação desse desejo de separação. O que quer ser dito com o silencio barulhento da anoréxica, aquela que nega a própria nutrição para a manutenção de sua existência?


A anorexia ao contrário do que muitos pensam, não é um fenômeno recente. Ainda que seja justificado por muitos como efeito da mídia e valorização do magro na sociedade contemporânea, penso que não podemos negar que há algo no sujeito que permite que esse discurso “cole” nele. O que nos remete àquelas que ficaram conhecidas como as Santas Anoréxicas, um tema abordado por Cybele Weinberg, no livro “Do altar às passarelas”.

Tomo a liberdade de contar um pouco de história.


Um dos maiores exemplos da recusa à alimentação em outros tempos foi Catarina de Siena (1347-1380). Nascida em uma família de artesãos da Toscana, em sua biografia, seu pai, Giácomo de Benincasa é retratado como um homem “bondoso, trabalhador e compreensivo”. Já sua mãe, Lapa Piacenti é apresentada como “loquaz e mulher de pulso firme”.


Quando esta, decidiu providenciar um casamento para a filha Catarina, que aos 12 anos se recusava a cuidar da aparência. A mãe então envia a filha para a casa de sua irmã, para que esta lhe transmita algo do feminino.


No entanto, essa irmã, tia de Catarina, morre no parto, e a mãe de Catarina decide casa-la com o seu tio, marido da irmã que morrera. Catarina se recusa fortemente a esse movimento, cortando seus longos cabelos, e por isso sua mãe lhe pune de diversas maneiras. Ela negou o

matrimônio, até que aos 16 anos, quando o pai a viu rezando, se convenceu da vocação da filha e permitiu que ela se dedicasse a vida religiosa. Catarina então, casou-se com Deus. Decidiu unir-se a ordem das Mantelatas, “mulheres viúvas ou solteiras” em idade avançada, que

viviam em suas casas e não no convento, sob regras muito severas, inclusive de silêncio, dedicadas aos cuidados com os pobres e doentes”. Ela então comia somente um pouco de pão e ervas cruas, recorria a vômitos e flagelava seu corpo três vezes ao dia com uma corrente de ferro. Seu confessor, Raymond, traz o seguinte sobre suas práticas:


“Era um grande sofrimento para ela comer, mais do que seria para um faminto ficar sem comida”. Catarina, ditou em ainda sua última carta “Meu corpo não aceita alimento algum, nem mesmo uma gota de água, e [sofro] tantos doces tormentos corpóreos como nunca tive iguais, a ponto da minha vida estar por um fio”. Ao longo de sua história, Catarina de Siena tratou de a seu modo tentar de impedir que o Outro interferisse no seu desejo, foi assim com a mãe e o feminino na figura do matrimônio ou com as Mantelatas que a princípio negaram a ela pertencer a ordem, feito que ela só conseguiu depois de uma passagem ao ato. Essa atuação é uma resposta precária do simbólico, entretanto está na ordem de uma lógica fálica, na medida em que tenta fazer sobreviver seu próprio desejo. Catarina nos mostra que não come para não ser comida e nem devorada. Nesse ponto, entra em cena uma pergunta que elaborei ao longo dos nossos estudos: há algo desse feminino, dessa mãe, que faz com que o discurso da recusa alimentar tenha aderência na mulher?


E isso nos leva aos estudos do corpo em psicanálise. Sabemos que o corpo em psicanálise é para além de um corpo físico, desarticulado do psíquico, muito pelo contrário, o corpo entra como função de espelho, de refletir o que há naquele sujeito, seja pelas manifestações mais

exuberantes como as somatizações que apresentaram Freud ao Inconsciente, quanto ao corpo refletido no espelho diante de um sujeito que enxerga ali algo diferente do real, ou seja, as distorções de imagem. Outras vezes o corpo é o único lugar sobre o qual o sujeito em questão possui controle, e os casos de recusa alimentar podem ser entendidos

como episódios em que esse controle comparece.


No caso da anorexia, é percebido desde Catarina de Siena no século XIV, a presença de um corpo no discurso. Ao mesmo tempo em que ela refere-se a si, já não enquanto esse corpo que recusa o alimento (desassociado como sendo parte dela), alega sentir doces tormentos corpóreos. Destaco o uso do significante doce que remete justamente a alimentação, e indo além, ao que há de mais prazeroso, esperado e mesmo infantil, o doce, a sobremesa.


Vendo os corpos de anoréxicas crônicas chega a ser ingênuo pensar que se trata de estética ou mesmo de agradar à um Outro. O agrado, aparentemente, está em si. Catarina, assim como àquelas que recusam o alimento nos dias de hoje, diz da manutenção de um vazio, de uma falta,

ao preço que for. E por que essa falta é tão importante, e mesmo tão cara? Precisando inclusive de ser mantida pela via do real, no corpo, na carne (ou na falta dela)? Até agora, os estudos me permitiram chegar à um ponto em que quando a menina já faltosa por sua natureza está diante de um Outro muito devorador, ou sem apetite, os sintomas aparecem, e a anorexia é um deles.


Quando falamos do feminino e como ele vai se construindo, diz de uma interrogação mais do que uma afirmação. Tanto Malvine Zalcberg em sua obra “A Relação Mãe e Filha” quanto Tereza Nazar em “Você tem fome de que?” trazem que o feminino é algo transmitido de uma mãe para sua filha, no entanto, transmitido também por uma falta, posto que à essa mãe falta algo, falta essa carregada pelo próprio feminino e transmitida junto à feminilidade. Zalcberg, traz, citando Lacan, que A relação com o Outro materno permeia a subjetividade dessas jovens a partir do fato de a menina, mais do que o menino, ter dificuldade de superar a ligação original com a mãe, na qual se presencia com frequência a imagem da mulher idealizada que conteria o mistério da sua sexualidade.


Lacan, em Diretrizes para um Congresso sobre a Sexualidade Feminina, questiona quais são as vias da libido concedidas à mulher pelos fâneros anatômicos de diferenciação sexual? Que pode ser lido como: o que cabelos grandes e unhas diferenciadas concedem a essa mulher? Libido?

Feminilidade? Ou nada disso?


Diante dos mistérios que perpassam isso que chamamos de feminino, e dos encontros e desencontros da transmissão dele entre as gerações de mulheres de uma família, somos convocados a pensar quais as vias de escapar de um devoramento. Entendendo a devastação, como quando uma mulher não consegue se desconectar de sua mãe, permanecendo num lugar de objeto muito semelhante aos tempos iniciais do édipo, percebeu-se a recusa a alimentar como uma tentativa de permitir que a falta compareça, que o vazio se faça presente.


As perguntas seguem muitas, tal como os arranjos que o sujeito vai elaborando ao longo de seu caminhar, próprios do desejo de buscar, e quem sabe, saber algo.

E sobre desejo, voltando à recusa alimentar, podemos dizer que não é que não haja desejo, ele comparece o tempo inteiro, talvez enquanto o desejo possível de ser desejado numa relação de tamanha devoração: o desejo de nada.


LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5: As Formações do Inconsciente (1957–1958). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

LACAN, Jacques. Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. In: ESCRITOS. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 734-745.

NAZAR, Teresa Palazzo. Você tem fome de quê? Três abordagens dos transtornos da alimentação. São Paulo: Companhia de Freud, 2013.

WEINBERG, Cybelle; Cordás, Táki Athanassios. Do Altar às Passarelas: da Anorexia Santa à Anorexia Nervosa. São Paulo: Annablume, 2006.

ZALCBERG, Malvine. A Relação Mãe e Filha. Rio de Janeiro: Campus, 2003.


[Texto produto do Cartel "Devastação: sonata do feminino" na Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, em outubro de 2020.]


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E sim, teve apresentação de Power Point meses antes, com os principais pontos em um Intercartéis


Texto escrito por mim, Camila Scarpati Dias, e apresentado junto ao Cartel "Devastação, Sonata do Feminino", na Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, em 12/05/2021.

A disponibilização dessas palavras faz parte de um exercício pessoal de compartilhar meus escritos ordinários, do dia a dia, no ponto em que estejam, sem revisões ou formatações elaboradas.

Apenas as palavras que consegui chegar para tentar chegar a algum lugar diferente de quando comecei a escrevê-las.

Talvez não sirvam para muita coisa, mas certamente me serviram para avançar e chegar a novos lugares.

 
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Quando recebi a proposta de falar sobre a obra de Elena Ferrante e a relação mãe e filha mostradas no livro e depois no filme “A Filha Perdida”, confesso que não pude e nem quis conter o entusiasmo. Estudando nesse cartel um pouco do feminino, em especial a relação mãe a filha e a devastação que vem daí, falando muito nos efeitos dessa devastação na filha e na dificuldade de se separar dessa mãe, afinal de acordo com Freud em Conferências sobre a Feminilidade (1931):


O afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio dessa espécie pode tornar-se muito influente e durar toda a vida; pode ser muito cuidadosamente supercompensado, posteriormente; geralmente, uma parte dele é superada, ao passo que a parte restante persiste (FREUD, 1931/2016, p. 150).


Mas... e para uma mulher que se torna mãe, como isso pode ser devastador?

Elena Ferrante se propõe a falar sobre isso, fazendo uso da literatura e de um codinome. A adoção do codinome me chama muita atenção, principalmente em tempos em que o público e o privado se misturam, essa pessoa que se nomeia “Elena”, talvez não se mostre para dar conta de mostrar e dizer de algo quase indizível: questões relacionadas à maternidade sem filtros, recortes instagramáveis e romantizações.

A secção que fiz nas representações de suas palavras foi me ater mais ao livro que ao filme, e mais do que isso, mais a história de “Leda Mãe” e “Leda Filha” apresentada de forma não cronológica ao longo da narrativa, usando como recurso as lembranças surgidas de acordo com os desdobramentos das férias de Leda.

Profissionalmente falando, Leda é uma italiana, especializou-se em Literatura Inglesa, algo curioso, que para remete a não bastar a língua mãe, foi buscar algo em outro idioma.

Leda nasceu num “ambiente onde tios, pai, primos agiam com uma cordialidade prepotente” (FERRANTE, 2016, p. 30). Pouco é abordado a respeito do pai de Leda, apontando para o dizer de Lacan em O Aturdito,  “a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai” (LACAN, 1972, p. 465). Já nas primeiras páginas a obra a relação conflituosa entre mãe e filha é apresentada por Ferrante:


[a mãe] se envergonhava da natureza rude do meu pai e dos parentes dele, queria ser diferente, fingia dentro daquele mundo, ser uma dama bem vestida e de bons modos. Mas ao primeiro conflito, a máscara caía e ela também aderia ao comportamento, à linguagem dos outros, com uma violência semelhante. Eu [Leda] a observava, surpresa e decepcionada, e planejava não se tornar como ela, tornar-se realmente diferente e demonstrar-lhe, desse modo que era inútil e ruim que ela nos assustasse com os seus ‘vocês nunca mais vão me ver’. Era preciso que ela mudasse mesmo, ou que realmente fosse embora da casa, que nos abandonasse, desaparecesse (FERRANTE, 2016, p. 30).


O movimento ou ameaças de desaparecimento da mãe, remetem a um fort da complexo, realizado mais na palavra do que na ação, mas não menos angustiante. A personagem se diz desejando que a mãe desaparecesse de vez, para assim parar de ser assustada pela ameaça de ausência. “Palavras podem ser extremamente benfajezas e podem ferir terrivelmente” (FREUD, 1926, 2017, p. 198).

Quais os efeitos recolhidos pela palavra, pela ameaça dessa mãe? A relação de Leda e sua mãe, ao longo da obra é mostrada repleta de conflitos, que não ficam menores quando num depois, quando já não apenas no lugar de mãe, mas também de avó, Leda vê sua mãe cuidando das filhas, das quais ela sim, se fez ausente em ato.

Ao se tornar mãe, de forma a princípio planejada, Leda se vê diante de questões da maternidade, com ideais construídos e tentativas de fazer diferente da mãe e de algum jeito conseguiu.

Enquanto sua mãe nunca estava disponível, Leda se fazia de boneca das filhas, ou pelo menos tentava, no entanto, esse lugar se apresenta como insustentável diante da rotina exaustiva e a tentativa de conciliar os papéis de mulher, mãe e profissional, ofertando-se ao que pensava ser o dever. No entanto, “entre a mãe e a mulher existe um hiato, aliás muito sensível na experiência.” (SOLER, 2003, p. 35) A idealização da “mãe boa” era tamanha que Leda caia por vezes no engodo de comparar sua maternagem justamente com mulheres que sequer eram mães, como Lucíllia.

Leda diz “Era só Lucília aparecer e imediatamente começava a encenar a mãe boa (FERRANTE, 2017, p. 93)” e então Leda se dedica a descrever minunciosamente os feitos  - ou desfeitos de Lucíllia:

Os hábitos de autonomia que eu havia imposto a elas com tanta dificuldade, necessários para que eu conseguisse ter algum tempo para mim, eram eliminados em poucos minutos assim que ela chegava. Era só Lucillia aparecer e imediatamente começava a encenar a mãe sensível, fantasiosa, sempre alegre e disponível: a mãe boa. (FERRANTE, 2016, p. 93)

Esse trecho em especial chamou muita atenção tem tempos de redes sociais, onde entra em cena sujeitos que se colocam no lugar mestria sobre os mais diversos assuntos, inclusive sobre a maternidade. Quais os efeitos disso recolhemos na clínica? Será que um privado que vai ao público ainda é privado? O que a imagem postada diz do real?

Diante de tantos fantasmas, Leda afirmava “Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo para trás, na direção da minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.” (FERRANTE, 2016, p. 108)

Sobre o Gianni, marido de Leda, a obra traz: “Ele nunca acreditava que eu pudesse realmente ir embora sem as meninas” (FERRANTE, 2016, p. 124), fato intimamente ligado à sua relação com a própria mãe, de quem pretendida se distanciar, mas como nos diz Manuel de Barros (BARROS, 2016, p. 64) “tem mais presença em mim o que me falta”. Assim, Leda, ao ser mãe, de fato não faz como a sua, que ameaçava partir sem nunca realizar.  

Leda então repete, recria a ausência materna com seu traço.

Partindo por três anos, sem ameaças, deixa as filhas Martha e Bianca aos cuidados do marido e que por sua vez delegou as filhas aos cuidados da avó materna. Durante esse período, Leda dedicava-se exclusivamente às suas paixões: a vida acadêmica e si mesma:

eu não podia dizer-lhe aos berros que já sabia de tudo sobre mim mesma, que estava com mil ideias novas, estudando, amando outros homens, apaixonando-me por qualquer um que me dissesse que eu era talentosa, inteligente, que me ajudasse a me testar” (FERRANTE, 2017, p. 123/124).

Após os três anos, Leda retorna e num só depois consegue elaborar sobre as filhas “eu as amava demais e achava que o amor por elas impedira que eu me tornasse eu mesma” (FERRANTE, 2017, p. 143), em um diálogo com aquela que durante a obra de certa maneira faz com suas lembranças venham à tona, Leda diz:


Eu estava como alguém que conquista a própria existência e sente um monte de coisas ao mesmo tempo, entre elas uma ausência insuportável (...) Percebi que não sou capaz de criar nada meu que pudesse realmente estar à altura delas (...) Voltei pelo mesmo motivo que me fez ir embora: por amor a mim mesma (...) Me senti mais inútil e desesperada sem elas do que com elas (...) Se tivesse tido azar, teria levado a vida toda para perceber. Mas tive sorte e demorei só três anos. Três anos e trinta e seis dias (...) Uma manhã descobri que única coisa que eu realmente desejava fazer era descascar frutas fazendo serpentes, enquanto minhas filhas me observavam, então comecei a chorar (FERRANTE, 2016, p. 144, 145).


Essas elaborações são verbalizadas num só depois, em conversa entre Leda e Nina, uma jovem mulher e mãe, que atrai o olhar de Leda e evoca nela questões relacionadas a maternidade e a feminilidade. Quando questionada por Nina se o que relatam como uma sensação de vertigem e náusea próprias da maternidade passa, que Nina consegue nomear como “Desnorteamento”, Leda elabora evocando a própria mãe: “Minha mãe usava outra palavra, chamava de despedaçamento” (FERRANTE, 2016, p. 146).

Pensando na teoria psicanalítica esse desnorteamento/despeçamento, poderiam ser lidos como um desnorteamento seguido de um despedaçamento de um ideal narcísico, “Que bobagem pensar que é possível falar de si mesmo aos filhos antes que eles tenham pelo menos cinquenta anos. Querer ser vista por eles como uma pessoa e não como uma função” (FERRANTE, 2016, p. 98). Leda, na obra de Ferrante ainda não fez cinquenta anos, tem quarenta e oito. Algo mirou nesse ideal de cinquenta anos, quando é possível ver a mãe como pessoa, mas que nem ela alcançou, afinal, no livro o nome da mulher que é sua mãe não aparece, tampouco de sua avó, ambas habitam a narrativa com suas funções. Já no filme, às menções à mãe de Leda são poucas.

Sendo assim, fica o questionamento, o quanto uma mulher precisa saber da história de sua mãe enquanto mulher, enquanto pessoa, para além da maternagem, para que talvez se permita ser ela mesma mais que uma função?

 

BARROS, Manuel de. Livro sobre nada (1996). Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

FERRANTE, Elena. A filha perdida (2006). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

FREUD, Sigmund. Feminilidade: novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932). Rio de Janeiro: Imago , 1996c. Obras completas, v. 22. 

LACAN, Jacques. O aturdido (1972). In: Outros escritos (pp. 449-497). Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.



[Texto publicado originalmente na Revista Registros Psicanalíticos, publicada pela Escola Lacaniana de Psicanalise de Vitória, em 2023, disponível em nesse link]


A disponibilização dessas palavras faz parte de um exercício pessoal de compartilhar meus escritos ordinários, do dia a dia, no ponto em que estejam, sem revisões ou edições elaboradas. Apenas as palavras que consegui chegar para tentar chegar a algum lugar diferente de quando comecei a escrevê-las.

Talvez não sirvam para muita coisa, mas certamente me serviram para avançar e chegar a novos lugares. 


 

 

 

© 2019 por Camila Scarpati Dias. 

Espírito Santo, Brasil

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