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Desagradando a gregos e troianos

  • Foto do escritor: Camila Scarpati Dias
    Camila Scarpati Dias
  • 20 de nov.
  • 10 min de leitura
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Primeiramente gostaria de agradecer ao convite para participar desse espaço Psicanálise e Arte, dois significantes que tenho imenso carinho. Se a humanidade passou séculos sem a psicanálise – posto que essa foi criada por Freud – sem arte, nós nunca ficamos. A nossa constituição como ser humano e diferenciação dos outros animais com quem compartilhamos o mundo passa por nos inclinarmos a registrar, a desenhar, diferenciar os sons que emitíamos até que fosse possível fazermos a coisa quase mágica de transformá-los em símbolos que viram letras, que viram palavras e dos quais fazemos tanto uso.


A partir desse furo narcísico que a História nos faz, ao lembrar que somos poeira num universo muito mais amplo de espaço e tempo do que nossos olhos alcançam, digo que ousei vir aqui falar de arte, e do quanto assim como tudo nessa vida, ela não está alheia aos efeitos de cada época.


Lacan colocou em seus escritos, e nós repetimos a exaustão, a importância de que analista alcance em seu horizonte a subjetividade de sua época. Um dos significantes que menos levantam-se questões nessa frase é HORIZONTE, e talvez aí esteja justamente a delicadeza que ele nos entrega.


O horizonte é onde enxergamos mas não chegamos.


Pode parecer simples, mas é cada vez mais difícil de sustentar o lugar de não chegar, de não mergulhar nas militâncias pró ou contra algo. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud nos diz do quanto os afetos possuem esse nome por algum motivo. Por nos afetarem.


E a arte certamente não escapa disso. Muito pelo contrário.


Não existe arte sem contexto, porque não existe arte sem artista, e nem artista sem sujeito e nem sujeito sem um tempo. E então chego ao nosso tempo, e na arte que vou percebendo ser produzida e as questões que me fazem. E aqui destaco que são questões e enquanto questões espero que por muito tempo permaneçam, afinal, Lacan também nos adverte no Seminário 6 sobre não compreendermos rápido demais.


Em 1922 alguns lançaram um manifesto antropofágico, reunindo artistas de diversas áreas — literatura, música, artes plásticas e arquitetura — com o objetivo de romper os padrões estéticos acadêmicos e valorizar uma arte genuinamente nacional. De imediato ridicularizado pelos estudiosos da época. Durante a leitura do poema "Os Sapos", de Manuel Bandeira — texto que apresenta uma crítica contundente à poesia parnasiana e ao rigor métrico —, Ronald de Carvalho enfrentou manifestações de desaprovação por parte do público, que interrompeu sua apresentação. Reações semelhantes ocorreram durante as intervenções de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. No campo das artes visuais, Anita Malfatti também foi alvo de hostilidade, encontrando bilhetes ofensivos afixados no verso de suas obras. O novo não vem sem uma dose de hostilidade.


Mas, uma questão já recorto daqui: em 1922, ao propor a antropofagia, se sabia que para o nacional vir, naquele ponto da história, algo era necessário pegar do outro, da Europa. Já se pensava necessário para desenvolver algo genuinamente novo trazer consigo algo de um tempo anterior.


Dias desses fiz o exercício de recolher entre meus livros aqueles que haviam sido escritos por autores negros, depois por mulheres, depois por autores não ocidentais. Não preciso dizer o quanto a predominância foi de autores homens, brancos, europeus. Freud e Lacan para começar a conversa, certo? Shakespeare, Dostoievski (com alguns minutos refletindo se seria a Rússia, quando Dostoievski escreveu (+-1850), suficientemente europeia rs) e por aí segue.

Proponho então hoje uma essa conversa sobre identidade, e por que essa discussão é relevante nesse espaço?


Enquanto arte, alguns movimentos são percebidos: um primeiro, de questionamento e (talvez essa palavra seja muito dura, mas não encontrei outra melhor) censura de obras a partir da biografia de seus autores ou de expressões utilizadas em suas obras, próprias daquela época. E um segundo movimento de criação de bolhas literárias, e aqui explico melhor de onde tirei essa expressão. Como disse ao fazer o exercício na minha própria estante, partindo da premissa de bolha já existente, pautada na branquitude masculina que por séculos foi quem majoritariamente estava por trás dos escritos e dando nome e rosto aos grandes movimentos sociais ocidentais. Mas o que chama atenção é que numa tentativa dialógica de fazer frente a isso vir de algo deliberado como: SÓ leio obras cujo autores tenham as características x, y, z. caminhando para um ponto de semelhança justamente a quem oprimia outrora, e às vezes correndo o risco de entrar em conflito entre os próprios grupos minorizados de diversas formas. Numa espécie de disputa de quem está mais a margem da sociedade.

O que vai ao encontro de Lacan em "só conheço uma única origem da fraternidade, é a segregação”  (LACAN, 1969/1970).


Ou ainda, surgem algumas fake news bem intencionadas e patrulhas linguísticas que, na prática, pouco contribuem para o avanço real dos direitos civis. Um exemplo: outro dia, minha mãe me corrigiu “filha, você falando isso?” ao ouvir a expressão “criado-mudo”. Ela mencionou uma história que leu, segundo a qual o móvel teria origem na prática de manter pessoas escravizadas ao lado da cama dos escravizadores durante a noite. Expliquei que essa versão não é historicamente plausível — afinal, não faria sentido colocar alguém escravizado em posição tão próxima ao escravizador dormindo vulnerável. Portanto, nesse caso específico, o uso da expressão não está necessariamente vinculado a esse tipo de violência.[1]


Por quais caminhos é possível que isso ocorra com a sabedoria da natureza onde os rios correm juntos até que se tornam outro, ao invés, do rio que quando se encontra com o mar produz ondas diante do impacto e ali se torna outra coisa que não rio?


Acho importante demarcar um ponto conceitual: vivemos num país e numa sociedade fruto de profundas questões sociais, como escravidão e machismo, em que por séculos foi colônia de exploração, como todos aprendemos durante o ensino fundamental. A ideia de democracia racial é uma falácia, que serve mais para silenciar o racismo do que para enfrentá-lo, mascarando relações de poder que permanecem desiguais.


Dito isso, o que fazer a partir daí? Quais caminhos tomar?

 

Percebem que aqui marco a questão do comum e do universal. Ainda que a história por vezes nos coloque como antagonistas, uns versus outros, e que as desigualdades sejam muitas, e de fato são, não se trata nessa história de rios e mares, águas doces e salgadas. Somos todos rios, com cursos e densidades diferentes, mas rios. Algo nos une, há um universal, e apenas a partir daí que alguma construção é possível.


O cientista político Yascha Mounk ao analisar as crises nas democracias liberais em todo mundo, afirma que


“E ao retratarem a sociedade como cheia de intolerantes que representam uma ameaça constante aos membros de todos os grupos minoritários concebíveis, encorajam cada vez mais pessoas a se sentirem perdidas em um mundo implacavelmente hostil.” (MOUNK, 2025, p. 369)


Mas acaba funcionando como um prato cheio para reacionários. Nessa hora a identidade entra como armadilha, usando a palavra que Yascha Mounk intitula seu livro.  Afinal,


“[identitarismos] oferecem a ilusão de que seremos plenamente reconhecidos em nossa singularidade enquanto nos reduzem a atores que leem roteiros simplistas sobre o que é ser homem ou mulher, pardo ou negro, gay ou heterossexual, cis ou trans”. (MOUNK, p. 370)


Ideia que vai de encontro a Psicanálise, que tem como tão caro o conceito de castração e incompletude, porque que trabalhamos por aqui com os desencontros, e a singularidade.


Será possível incluir, chamar para essa dança, sem tirar da pista os que já estavam ali? Apontar nas obras as expressões que hoje felizmente não cabem mais, mas mantê-las inclusive como registro deu tempo onde o que vigorava era aquilo? Afinal, não dado que é possível passar uma borracha na história sem deixar rasuras. Talvez seja melhor continuar a escrevê-la.

Dito algo sobre a arte, vamos a psicanálise.


Se a psicanálise é, para a gramática, um substantivo abstrato, psicanalista é substantivo concreto. São pessoas, sujeitos, que durante algumas horas do dia se propõem a exercer uma função. O pagamento ali, é o apagamento do sujeito para que o analista advenha, como aponta Lacan em Direção do Tratamento.


“Mas pagar também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência”. (LACAN, Direção do Tratamento, p. 593);


Emprestar é diferente de anular. A pessoa continua existindo fora dali e é ela quem que orienta a formação, não o analista enquanto função. Os textos que cada um se propõem a ler, a trabalhar, tudo isso diz de escolhas que cada um traz de sua história, dos caminhos e lugares por onde passou.


Ou nesse ponto do percurso alguém acha que alguma escolha de assunto para ler ou estudar é neutra ou fruto de um acaso? Se assim o fosse, qual seria o lugar do inconsciente?


E então chegamos a O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório, livro que alvo de censura em algumas escolas brasileiras devido ao seu conteúdo crítico sobre racismo e violência policial e ao narrar a ida de um de seus personagens a um analista, traz:


“Eles não faziam a mínima ideia de que a metade dos seus problemas estava contida na cor da pele, você pensou. Não diretamente, mas lá no fundo. Você sabia que tudo isso era mais complexo do que eles imaginavam. A psicanálise tinha cor e ela era branca, você pensou. E definitivamente havia coisas que escapavam a Freud.” (TENÓRIO, p. 35)


Por muitos anos a psicanálise foi algo, sim, elitizado. Freud propôs as clínicas públicas, mas convenhamos que é uma minoria da sociedade que tem a possibilidade de passar por uma experiência de análise, e assim como a formação de um analista é custosa em vários sentidos. Basta olharmos a nossa volta, e não percebemos a presença de muitas pessoas negras.


Toda área que se propõe a dialogar com outras deve estar disposta a receber críticas e questionamentos — isso faz parte da dinâmica de quem está comprometido com a construção de algo novo. É o que vemos em Freud e Lacan, que buscaram constantemente o diálogo e, ao se afastarem de seus lugares como médicos, e se inclinarem à clínica psicanalítica, inaugurando uma nova forma de escuta e intervenção.


Atualmente tem muita coisa nova sendo produzida e reconhecida por pares, e penso serem importantes nos inclinarmos a conhecer antes de marcar uma posição. Isildinha Batista Nogueira, por exemplo, traz seu livro cujo título é segundo ela uma provocação “A cor do inconsciente”, que ao contrário do que parece, não se propõem a falar que o inconsciente tem cor, mas que a cor da pele tem – sim - influência na constituição psíquica do sujeito. Nas palavras da autora o objetivo da obra é: “Investigar as formas pelas quais se dá, para o negro, no plano psíquico, a repercussão do racismo e da discriminação, e de que maneira tal repercussão que afeta o negro enquanto sujeito produz, para esse sujeito, configurações psíquicas peculiares” (NOGUEIRA, p. 36).


Vivemos em um profundamente marcado pela desigualdade social e que traz ainda hoje claros resquícios da escravidão que por séculos foi a base de nossa força de trabalho, que ainda hoje tem diferenças salarias importantes de acordo com o Ministério do Emprego e Trabalho[2] ou em relação a população carcerária, são mais de 70% com aumento ao longo dos anos[3]. Poderia seguir discorrendo de forma pragmática dados referentes ao lugar que ainda hoje pessoas negras ocupam em nosso país, ou sugerir que estejam atentos aos movimentos da cidade, a olhar para dentro do ônibus, uma produzida há vinte anos ou para a foto de uma turma de formandos de qualquer curso antes da implantação da política de cotas. Isso não é sem efeitos. E então, vamos a preciosidade que Tenório nos traz.


Trago um último recorte da obra de Jefferson Tenório, o único momento que ele usa a expressão que dá nome a sua obra “avesso”:


“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo.” (TENÓRIO, p. 65)


É justamente ali que uma análise se propõem a acessar: esse avesso, justamente o inconsciente estruturado enquanto linguagem, que está para além da pele. A psicanálise vai no oposto ao que seria limitar o sujeito a pele que o cobre. Trabalha-se com os significantes e a subjetividade que cada um traz, e o quanto em uma análise é possível percorrer a partir disso, e não apesar disso. Em uma análise não lamentamos o caminho, trabalhamos com ele. O que de forma alguma quer dizer que lidar com o avesso, o corpo psíquico, seja relevar a existência de uma pele que envolve o corpo físico e tudo que a envolve.


Lacan ao falar sobre o analista alcançar em seu horizonte a subjetividade da época, talvez estivesse falando sobre esse desafio de não mergulhar de cabeça onde não se sabe a profundidade. Um desafio e tanto em tempos que pressionam para posicionar-nos seja de defesa ou ataque a uma ideia, em uma temporalidade que ignora pausas e reflexões. Talvez estejamos no tempo mais de elaborar do que de concluir algo.


Quanto a arte, que a gente possa colher dela a diversidade que nos apresenta enfim, sem usar do que tanto criticamos há não tanto tempo assim, ao invés de adotarmos posturas casmurras no mundo, e como o Alferes de Machado nos colocarmos mais colados a identidade que criamos diante do espelho do que no que há em nosso avesso. Tomar o cuidado de não vaiar Mario de Andrade por falta de métrica.


Talvez eu seja uma otimista nata, que pensa que muitos tons são possíveis além da rigidez dos extremos, por caminhos que não sei bem ao certo como seriam trilhados.


E assim, correndo o risco de desagradar a gregos e troianos, em um tempo likes e curtidas são buscados, encerro esse texto, fruto de muita inquietação que compartilho agora com vocês e espero que encontre ressonância.


LACAN, J. Direção do tratamento e princípios de seu poder.

LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

MOUNK, Yascha. A armadilha da identidade: uma história das ideias e do poder em nosso tempo. 2024.

NOGUEIRA, I. B. A cor do inconsciente - significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021.

TENÓRIO, Jefferson. O Avesso da Pele - Jeferson Tenório.

 



 

Texto escrito por mim, Camila Scarpati Dias, e apresentado no Espaço Psicanálise e Arte, da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, em 27/06/2025.

A disponibilização dessas palavras faz parte de um exercício pessoal de compartilhar meus escritos ordinários, do dia a dia, no ponto em que estejam, sem revisões ou edições elaboradas. Apenas as palavras que consegui chegar para tentar chegar a algum lugar diferente de quando comecei a escrevê-las.

Talvez não sirvam para muita coisa, mas certamente me serviram para avançar e chegar a novos lugares.


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© 2019 por Camila Scarpati Dias. 

Espírito Santo, Brasil

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