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Quando pensei na importância de desenvolver trabalhos visando co-memorar o percurso da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória (EPLV), veio-me imediatamente o cuidado que Freud ao escrever “Contribuição à história do movimento psicanalítico”. Não por acaso após atravessar o oceano chegando aos Estados Unidos e diante do crescimento da Psicanálise, seu criador fez questão de registrar a origem:


Pois a psicanálise é criação minha, por dez anos eu fui o único indivíduo que dela se ocupou, e foi sobre mim que recaiu, em forma de crítica, toda a irritação provocada por seu aparecimento” (FREUD, 1914/2012, p. 246)


No mesmo texto Freud escreveu algo que segue atual:


Ao longo desses anos, li cerca de uma dúzia de vezes, em informes de atividades de certos congressos e encontros de sociedades científicas, que a psicanálise estaria definitivamente superada e liquidada. (...) Após cada uma dessas declarações de que havia morrido, a psicanálise adquiriu novos seguidores e colaboradores e fundou novos órgãos. Ser declarada morta não deixa de ser um progresso em relação a ser enterrada em silêncio (FREUD, 1914/2012, p. 283)


Desde a pandemia de COVID-19 que chegou ao Brasil no início de 2020, diante do real que compareceu - e do qual foi impossível recusar - o interesse sobre temas relacionados ao psiquismo aumentou consideravelmente. Nós mesmos somos testemunhas do aumento dos pedidos de análise naquele contexto.

Diante de todas as incertezas que a sociedade estava se deparando, em conferência na ELPV intitulada “Por que não à regulamentação e à graduação de Psicanálise?” Denise Maurano declarou que:


Com a pandemia, tanto a psicanálise conseguiu manter os atendimentos online, quanto diante da dimensão de real que o vírus trouxe para a cena, o que se evidenciou é que não houve condicionamento operante capaz de barrar a angústia advinda da pandemia. Então a psicanálise ganhou um espaço fenomenal. (MAURANO, 2022).


Ressalta-se que alguns psicanalistas passaram veicular conteúdos e cursos sobre psicanálise nas redes sociais, alcançando centenas de milhares de pessoas. No entanto, a ultrapassagem das fronteiras dos consultórios e a conquista de espaço para o significante “psicanálise” evidenciou ainda mais apropriações perversas dele como as tentativas de regulamentação bem como a criação de cursos de graduação em psicanálise, sindicatos e conselhos regulamentadores (MAURANO, 2022). Não me alongarei sobre esse assunto, mas de alguma maneira esses movimentos apontam para a necessidade de que certos lugares com exercício de uma prática ética da psicanálise sejam demarcados.

Assim, o título desse trabalho é inspirado em uma música argentina cujas questões lançadas “¿Qué es la historia sin registro, qué es la historia sin memoria?¿Quién la cuenta? ¿quién la inventa?¿Quién la olvida? ¿quién la borra?[1] (MEMÓRIA, 2003) me colocaram a pensar a respeito de como estamos escrevendo e memorando a história da ELPV.

Ainda falando sobre os argentinos, que possuem inegável importância na psicanálise na América Latina, destaco sua relação com a própria história e memória, tão bem apresentada no filme “Argentina, 1985”, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2023.

A película conta a história verídica dos promotores Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo responsáveis por conduzir as investigações e elaborar a acusação para o julgamento na instância civil dos militares envolvidos na ditadura militar argentina, encerrada em 1983, o episódio ficou conhecido como “Julgamento das Juntas” (ARGENTINA, 1985, 2022).

Por meio da arte a luta daquele povo e de suas instituições pela valorização da memória e não apagamento de sua história foi re-contada ao mundo e aos filhos da democracia argentina, em um filme cujo o clímax são trechos do discurso de acusação com dezenove páginas proferido no tribunal pelo promotor Strassera. Utilizando-se da memória como ferramenta para a paz, o promotor argumentou ao júri:


"Nós, argentinos, tentamos obter a paz com base no esquecimento e falhamos: já falamos sobre anistias passadas e frustradas. Tentamos buscar a paz através da violência e do extermínio do adversário, e falhamos. Refiro-me ao período que acabei de descrever. A partir deste julgamento e da sentença que defendo, temos a responsabilidade de fundar uma paz com base não no esquecimento e sim na memória; não na violência e sim na justiça" (STRASSERA, 1985).


Quase quarenta anos após o Julgamento das Juntas, Luiz Moreno Ocampo - o advogado que atuou como promotor adjunto no caso - articulou em entrevista ao programa Roda Viva sobre a importância da memória: “As guerras são lutadas duas vezes: primeiro, no campo de batalha; depois, na memória. Na memória do campo de batalha” (OCAMPO, 2023). Ocampo relata que o Julgamento das Juntas foi um marco na história da Argentina e mundial:


Saibam que a ideia de não investigar o passado, nos anos 80, era a ideia que os professores de Relações Internacionais consideravam boa. A Espanha tinha tido uma transição pactuada, o Brasil tinha tido uma transição pactuada com a democracia, e a Argentina, com o presidente Alfonsín na liderança, decidiu investigar o passado, o que era totalmente inédito, estranho e contrário ao raciocínio dos especialistas. (OCAMPO, 2023)


A partir da pesquisa sobre o Julgamento das Juntas, e a escuta tanto do discurso de Strassera quanto da entrevista de Ocampo, vieram muitas questões sobre história e memória e interligação entre esses dois conceitos. Do que é feita uma história? Pensando em algo como um ferro a ser forjado, histórias são feitas unicamente por seres humanos, como produtos de linguagem. Uma vez cientes de que são forjadas, quais suas matérias primas? Documentos, fotos, livros, conversas?

O historiador Jacques Le Goff em sua clássica obra “História e Memória” menciona a psicanálise ao correlacionar memória e esquecimento:


Finalmente, os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento, nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. (...) Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1990. p. 368)


Freud traz que “o esquecimento de impressões, cenas, vivências reduz-se em geral a um “bloqueio” delas.” (FREUD, 1913, p. 196). Portanto, tendo a memória com recorte de algo registrado a partir da ótica de cada sujeito, qual a função dela na construção de um passado?

Quem detém a construção e a narrativa sobre o passado, traça os significantes que irão compor a história, a forma como é apresentado ao mundo um sujeito, uma instituição, uma nação e também de uma Escola de Psicanálise.

A literatura nos deixa um interessante exemplo na distopia “1984” onde o passado era um elemento cuidadosamente controlado pelo Grande Irmão que a partir do domínio do passado, traçava as diretrizes do presente, pois, ““Quem controla o passado,” dizia o lema do Partido, “controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.”” (ORWELL, 1949/2009, p. 49). A exemplo de casos reais tem-se as várias versões a respeito de acontecimentos históricos a nível de Brasil e mundo, demonstrando a constante tentativa de reescrever e legitimar visões de mundo a partir da História. “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa (BLOCH, 2002, p. 75).

Para Marc Bloch, “a própria ideia de que o passado, enquanto tal, possa ser objeto de ciência é absurda” (BLOCH, 2002, p. 52). Segundo ele, que sem que haja uma decantação prévia, fenômenos que não tivessem relação além do fato de não serem contemporâneos ao tempo-presente não constituiriam apenas por isso, objeto de estudo (BLOCH, 2002, p. 53). Também faz-se desejável nessa pesquisa de um passado algum distanciamento de modo que a curiosidade pela história desse objeto possa ser maior do que o amor ou o ódio a ele.


Por infelicidade, à força de julgar, acaba-se, quase fatalmente, por perder até o gosto de explicar. Com as paixões do passado misturando seus reflexos aos partis pris do presente, o olhar se turva sem remédio e, assim como o mundo dos maniqueus, a humana realidade vira apenas um quadro em preto e branco (BLOCH, 2002, p. 126).

 

Quando pensamos em uma análise e no que é dito a partir da associação livre, várias questões surgem: em quem tempo ocorre o que é dito ali? Trata-se de passado? De presente? De um passado-presente? “Condenada a uma eterna transfiguração, uma pretensa ciência do presente se metamorfosearia, a cada momento de seu ser, em ciência do passado” (BLOCH, 2002, p. 60). Assim, quantas vezes o passado é reescrito em uma análise? O quanto as posições do olhar do sujeito a respeito de sua própria história muda ao longo de um percurso em análise?

Freud com simplicidade fala sobre como se dá uma análise: “O analista pede que o paciente venha a seu consultório em um horário determinado do dia, deixa-o falar, ouve o que ele diz, depois fala com ele e o faz ouvir” (FREUD, 1914/2015, p. 210). Não seria isso algo parecido com uma decantação?[2]

O significante “decantação” pode ser usado para explicar o que ocorreu a partir das reuniões ao longo de 2022 com o trabalho de reflexão sobre a nova logomarca da ELPV e o modo como seriam divulgadas as atividades no Instagram e em outras redes sociais, com o apoio da Oca.Branding e Design. Durante vários encontros elaborou-se junto aos pares de várias gerações, os traços constitutivos da ELPV, rememorar pontos importantes de seu percurso, fundação, os encontros promovidos, o lugar que ela ocupa e os passos em direção ao futuro, sempre insistindo no estudo, no movimento e na ética para a formação do analista.

Com isso o “passado, presente e futuro”, se colocaram como um importante enodamento do que consiste mais que a história, a existência de algo. É imprescindível que os três pilares existam: o passado, para que se saiba de onde vem, o presente que é onde se trabalha, e o futuro que de algum jeito nunca chega, mas sempre é uma aposta na insistência do trabalho. Somos enquanto presente o futuro de um passado. E deseja-se que haja (tanto no sentido de haver quanto de agir) um futuro depois de nós.

Acompanhando as reuniões com a consultoria da a Oca, pude ter mais contato com uma história transmitida pela oralidade, com base nas memórias dos que estiveram no começo, desde a fundação, que falaram com amor, com cuidado e carinho da psicanálise e de como a formação atravessou suas próprias vidas.

Trançando a história da Escola com a história do nosso país e do mundo, é significativo termos no início da década de 80, com o muro de Berlim ainda de pé, o mundo polarizado entre URSS e EUA, um Brasil que vivera anos de chumbo e engatinhava para o fim da ditadura militar, alguns estudantes de psicologia, psiquiatras e psicólogos em Vitória, fisgados pelo discurso psicanalítico de um passador da psicanálise a ponto de se organizarem e decidirem fundar a Associação Cultural Colégio Freudiano de Vitória que daria a base da nossa escola.

Isso não é qualquer coisa.

Mesmo ciente do quanto a escrita é castradora e que nem tudo cabe na palavra, nada nos impede de tentar juntar algumas para que nem tudo se perca ao vento do tempo.

Então, conversando no cartel da Secção Clínica sobre os 25 anos da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, e os 40 anos a partir da semente que deu origem a ela, demos início a algumas atividades para co-memorar essa data. Juntando pedaços de memória, e com a curiosidade desejável ao oficio do analista, nos propusemos a recolher daqueles a quem em algum momento suas histórias convergiram com a da escola.

Afinal, se não nos apropriarmos, cada uma sua maneira, da história que ajudamos a escrever, quem o fará?

Iniciou-se um trabalho de recolhimento de registros, atas, publicações e envio de um formulário eletrônico - tanto a atuais membros quanto àqueles que já não o são – para que pudessem ser escutados, e que uma pequena parte de suas memórias em relação à EPLV pudesse ser recolhida.

Constavam no formulário enviado as seguintes perguntas: “Como você conheceu a ELPV?”; “Qual o lugar de uma escola na formação do analista?”; “Qual o lugar da ELPV em sua formação?”, todas com espaço para que fosse dito o quanto quisesse e os retornos foram dos mais variados. Houve quem respondesse uma questão em uma página, e quem o fizesse em duas linhas. Também houveram silêncios e até quem respondesse sem saber que estava respondendo. Houve aquele que invés de escrever o próprio nome, escreveu “sim” - sim para a psicanálise. O lugar dos passadores da psicanálise se fez presente. Importantes significantes puderam ser ditos, repetidos e escutados, e mais que isso: registrados. Tal como os efeitos de transferência, ou o que coube na sobre ela palavra, fragmentos de “amódio” que farão parte da história dessa escola, registrados com a força das letras - da linguagem - a qual tanto nos debruçamos.

Ao contrário de uma foto de família feita em estúdio com todos bem vestidos e posando sorrindo, o intuito do projeto foi justamente recolher fragmentos de memórias, da forma como pudessem ser ditas, no um a um, no tempo de cada um. Inclusive com espaço para silêncios.

Na mitologia grega temos a história de Teseu e o Minotauro onde o herói ateniense foi a Creta lutar contra o monstro em um labirinto. Porém, apenas força e coragem, não foram o suficiente para vencer o desafio. Teseu precisou contar com a ajuda de Ariadne, filha do rei de Creta. Astutamente ela lhe entregou um novelo de lã. Assim, ele conseguiu sair do labirinto ao seguir o fio do novelo (VASCONCELLOS, 1998. pp. 24, 25).

Talvez de algum jeito, que precisamos inventar todos os dias, seja necessário aprender a deixar fios pelo caminho. Sabendo de onde viemos e assim podendo tentar, ainda que sem garantia de êxitos, mas com mais propriedade sobre nosso percurso, saber para onde estamos indo enquanto deixamos um fio de lã para os que chegarão. Esse é um fio que deixo.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARGENTINA, 1985. Direção: Santiago Mitre. Roteiro: Ricardo Darín, Victoria Alonso, Stephanie Beauchef, Santiago Carabante, Chino Darín, Phin Glynn, Axel Kuschevatzky, Agustina Llambi-Campbell, Santiago Mitre, Federico Posternak, Ana Taleb, Cindy Teperman. Produção: La Unión de los Ríos, Kenya Films, Infinity Hill, Amazon Studios. Argentina, EUA, Inglaterra: Amazon Prime Video, 2022.

BLOCH. Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

FREUD, Sigmund. Contribuição à história do movimento psicanalítico (1914). In: Obras completas, volume 11 : totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir, elaborar (1914). In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia : (“O caso Schreber”): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga (1926). In: Obras incompletas de Sigmund Freud, Fundamentos da Clínica Psicanalítica, v.6) . Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

MAURANO, Denise. Por que não à regulamentação e à graduação de Psicanálise? In: Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória. Youtube. 06 mai. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=o7eEotGNMfQ>. Acesso em: 30 de abr 2023.

MEMÓRIA. Intérprete: Erreway. Compositor: GIACOMI Maria Cristina, FURMANSKI Silvio Oscar, NOVELLO Gustavo Ariel. In: Memória. Buenos Aires: Sony Music, 2004. cd, faixa 1 (4 min).

OCAMPO, Luis Moreno. Entrevista ao Programa Roda Viva. TV Cultura/Youtube. 27 fev. 2023. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8bvNbphx1pg>. Acesso em: 23 de abr 2023.

ORWELL, George. 1984 (1949). São Paulo : Companhia das Letras, 2009

STRASSERA, Julio Cesar. La acusación: lucimiento de un fiscal (1985). Proyecto Desaparecidos. Disponível em: <http://desaparecidos.org/arg/doc/secretos/fiscal02.htm>. Acesso em: 27 abr. 2023.

VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Mitos gregos. São Paulo: Objetivo, 1998.


[1] Tradução: O que é a história sem registro? / O que é a história sem memória? / Quem a conta? Quem a inventa? /Quem a esquece? Quem a apaga?

 

[2] de·can·ta·ção: (francês décantation) substantivo feminino: Passagem lenta de um líquido de um para outro recipiente, a fim de o separar das impurezas/"decantação", em Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.



[Texto publicado originalmente na Revista Registros Psicanalíticos, publicada pela Escola Lacaniana de Psicanalise de Vitória, em 2023, disponível em nesse link]

 
  • Foto do escritor: Camila Scarpati Dias
    Camila Scarpati Dias
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Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa. Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele:

Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: “Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?”. Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.

Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “Eu te amo, eu te amo…”. Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”.

O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro. O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir… E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos…

A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá… Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:

Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: “Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo”. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: “Tens razão, minha querida”. A situação está salva e o ódio vai aumentando.

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão… O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.

Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem – cresce o amor… Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…

 
  • Foto do escritor: Camila Scarpati Dias
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Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


Clarice Lispector, texto extraído do livro Felicidade Clandestina.


Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasivna Lispector, foi uma escritora e jornalista brasileira nascida na Ucrânia. Autora de romances, contos, e ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX e a maior escritora judia desde Franz Kafka.

 

© 2019 por Camila Scarpati Dias. 

Espírito Santo, Brasil

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