- Camila Scarpati Dias

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Quando pensei na importância de desenvolver trabalhos visando co-memorar o percurso da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória (EPLV), veio-me imediatamente o cuidado que Freud ao escrever “Contribuição à história do movimento psicanalítico”. Não por acaso após atravessar o oceano chegando aos Estados Unidos e diante do crescimento da Psicanálise, seu criador fez questão de registrar a origem:
Pois a psicanálise é criação minha, por dez anos eu fui o único indivíduo que dela se ocupou, e foi sobre mim que recaiu, em forma de crítica, toda a irritação provocada por seu aparecimento” (FREUD, 1914/2012, p. 246)
No mesmo texto Freud escreveu algo que segue atual:
Ao longo desses anos, li cerca de uma dúzia de vezes, em informes de atividades de certos congressos e encontros de sociedades científicas, que a psicanálise estaria definitivamente superada e liquidada. (...) Após cada uma dessas declarações de que havia morrido, a psicanálise adquiriu novos seguidores e colaboradores e fundou novos órgãos. Ser declarada morta não deixa de ser um progresso em relação a ser enterrada em silêncio (FREUD, 1914/2012, p. 283)
Desde a pandemia de COVID-19 que chegou ao Brasil no início de 2020, diante do real que compareceu - e do qual foi impossível recusar - o interesse sobre temas relacionados ao psiquismo aumentou consideravelmente. Nós mesmos somos testemunhas do aumento dos pedidos de análise naquele contexto.
Diante de todas as incertezas que a sociedade estava se deparando, em conferência na ELPV intitulada “Por que não à regulamentação e à graduação de Psicanálise?” Denise Maurano declarou que:
Com a pandemia, tanto a psicanálise conseguiu manter os atendimentos online, quanto diante da dimensão de real que o vírus trouxe para a cena, o que se evidenciou é que não houve condicionamento operante capaz de barrar a angústia advinda da pandemia. Então a psicanálise ganhou um espaço fenomenal. (MAURANO, 2022).
Ressalta-se que alguns psicanalistas passaram veicular conteúdos e cursos sobre psicanálise nas redes sociais, alcançando centenas de milhares de pessoas. No entanto, a ultrapassagem das fronteiras dos consultórios e a conquista de espaço para o significante “psicanálise” evidenciou ainda mais apropriações perversas dele como as tentativas de regulamentação bem como a criação de cursos de graduação em psicanálise, sindicatos e conselhos regulamentadores (MAURANO, 2022). Não me alongarei sobre esse assunto, mas de alguma maneira esses movimentos apontam para a necessidade de que certos lugares com exercício de uma prática ética da psicanálise sejam demarcados.
Assim, o título desse trabalho é inspirado em uma música argentina cujas questões lançadas “¿Qué es la historia sin registro, qué es la historia sin memoria?¿Quién la cuenta? ¿quién la inventa?¿Quién la olvida? ¿quién la borra?[1]” (MEMÓRIA, 2003) me colocaram a pensar a respeito de como estamos escrevendo e memorando a história da ELPV.
Ainda falando sobre os argentinos, que possuem inegável importância na psicanálise na América Latina, destaco sua relação com a própria história e memória, tão bem apresentada no filme “Argentina, 1985”, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2023.
A película conta a história verídica dos promotores Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo responsáveis por conduzir as investigações e elaborar a acusação para o julgamento na instância civil dos militares envolvidos na ditadura militar argentina, encerrada em 1983, o episódio ficou conhecido como “Julgamento das Juntas” (ARGENTINA, 1985, 2022).
Por meio da arte a luta daquele povo e de suas instituições pela valorização da memória e não apagamento de sua história foi re-contada ao mundo e aos filhos da democracia argentina, em um filme cujo o clímax são trechos do discurso de acusação com dezenove páginas proferido no tribunal pelo promotor Strassera. Utilizando-se da memória como ferramenta para a paz, o promotor argumentou ao júri:
"Nós, argentinos, tentamos obter a paz com base no esquecimento e falhamos: já falamos sobre anistias passadas e frustradas. Tentamos buscar a paz através da violência e do extermínio do adversário, e falhamos. Refiro-me ao período que acabei de descrever. A partir deste julgamento e da sentença que defendo, temos a responsabilidade de fundar uma paz com base não no esquecimento e sim na memória; não na violência e sim na justiça" (STRASSERA, 1985).
Quase quarenta anos após o Julgamento das Juntas, Luiz Moreno Ocampo - o advogado que atuou como promotor adjunto no caso - articulou em entrevista ao programa Roda Viva sobre a importância da memória: “As guerras são lutadas duas vezes: primeiro, no campo de batalha; depois, na memória. Na memória do campo de batalha” (OCAMPO, 2023). Ocampo relata que o Julgamento das Juntas foi um marco na história da Argentina e mundial:
Saibam que a ideia de não investigar o passado, nos anos 80, era a ideia que os professores de Relações Internacionais consideravam boa. A Espanha tinha tido uma transição pactuada, o Brasil tinha tido uma transição pactuada com a democracia, e a Argentina, com o presidente Alfonsín na liderança, decidiu investigar o passado, o que era totalmente inédito, estranho e contrário ao raciocínio dos especialistas. (OCAMPO, 2023)
A partir da pesquisa sobre o Julgamento das Juntas, e a escuta tanto do discurso de Strassera quanto da entrevista de Ocampo, vieram muitas questões sobre história e memória e interligação entre esses dois conceitos. Do que é feita uma história? Pensando em algo como um ferro a ser forjado, histórias são feitas unicamente por seres humanos, como produtos de linguagem. Uma vez cientes de que são forjadas, quais suas matérias primas? Documentos, fotos, livros, conversas?
O historiador Jacques Le Goff em sua clássica obra “História e Memória” menciona a psicanálise ao correlacionar memória e esquecimento:
Finalmente, os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento, nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. (...) Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1990. p. 368)
Freud traz que “o esquecimento de impressões, cenas, vivências reduz-se em geral a um “bloqueio” delas.” (FREUD, 1913, p. 196). Portanto, tendo a memória com recorte de algo registrado a partir da ótica de cada sujeito, qual a função dela na construção de um passado?
Quem detém a construção e a narrativa sobre o passado, traça os significantes que irão compor a história, a forma como é apresentado ao mundo um sujeito, uma instituição, uma nação e também de uma Escola de Psicanálise.
A literatura nos deixa um interessante exemplo na distopia “1984” onde o passado era um elemento cuidadosamente controlado pelo Grande Irmão que a partir do domínio do passado, traçava as diretrizes do presente, pois, ““Quem controla o passado,” dizia o lema do Partido, “controla o futuro: quem controla o presente controla o passado.”” (ORWELL, 1949/2009, p. 49). A exemplo de casos reais tem-se as várias versões a respeito de acontecimentos históricos a nível de Brasil e mundo, demonstrando a constante tentativa de reescrever e legitimar visões de mundo a partir da História. “O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa (BLOCH, 2002, p. 75).
Para Marc Bloch, “a própria ideia de que o passado, enquanto tal, possa ser objeto de ciência é absurda” (BLOCH, 2002, p. 52). Segundo ele, que sem que haja uma decantação prévia, fenômenos que não tivessem relação além do fato de não serem contemporâneos ao tempo-presente não constituiriam apenas por isso, objeto de estudo (BLOCH, 2002, p. 53). Também faz-se desejável nessa pesquisa de um passado algum distanciamento de modo que a curiosidade pela história desse objeto possa ser maior do que o amor ou o ódio a ele.
Por infelicidade, à força de julgar, acaba-se, quase fatalmente, por perder até o gosto de explicar. Com as paixões do passado misturando seus reflexos aos partis pris do presente, o olhar se turva sem remédio e, assim como o mundo dos maniqueus, a humana realidade vira apenas um quadro em preto e branco (BLOCH, 2002, p. 126).
Quando pensamos em uma análise e no que é dito a partir da associação livre, várias questões surgem: em quem tempo ocorre o que é dito ali? Trata-se de passado? De presente? De um passado-presente? “Condenada a uma eterna transfiguração, uma pretensa ciência do presente se metamorfosearia, a cada momento de seu ser, em ciência do passado” (BLOCH, 2002, p. 60). Assim, quantas vezes o passado é reescrito em uma análise? O quanto as posições do olhar do sujeito a respeito de sua própria história muda ao longo de um percurso em análise?
Freud com simplicidade fala sobre como se dá uma análise: “O analista pede que o paciente venha a seu consultório em um horário determinado do dia, deixa-o falar, ouve o que ele diz, depois fala com ele e o faz ouvir” (FREUD, 1914/2015, p. 210). Não seria isso algo parecido com uma decantação?[2]
O significante “decantação” pode ser usado para explicar o que ocorreu a partir das reuniões ao longo de 2022 com o trabalho de reflexão sobre a nova logomarca da ELPV e o modo como seriam divulgadas as atividades no Instagram e em outras redes sociais, com o apoio da Oca.Branding e Design. Durante vários encontros elaborou-se junto aos pares de várias gerações, os traços constitutivos da ELPV, rememorar pontos importantes de seu percurso, fundação, os encontros promovidos, o lugar que ela ocupa e os passos em direção ao futuro, sempre insistindo no estudo, no movimento e na ética para a formação do analista.
Com isso o “passado, presente e futuro”, se colocaram como um importante enodamento do que consiste mais que a história, a existência de algo. É imprescindível que os três pilares existam: o passado, para que se saiba de onde vem, o presente que é onde se trabalha, e o futuro que de algum jeito nunca chega, mas sempre é uma aposta na insistência do trabalho. Somos enquanto presente o futuro de um passado. E deseja-se que haja (tanto no sentido de haver quanto de agir) um futuro depois de nós.
Acompanhando as reuniões com a consultoria da a Oca, pude ter mais contato com uma história transmitida pela oralidade, com base nas memórias dos que estiveram no começo, desde a fundação, que falaram com amor, com cuidado e carinho da psicanálise e de como a formação atravessou suas próprias vidas.
Trançando a história da Escola com a história do nosso país e do mundo, é significativo termos no início da década de 80, com o muro de Berlim ainda de pé, o mundo polarizado entre URSS e EUA, um Brasil que vivera anos de chumbo e engatinhava para o fim da ditadura militar, alguns estudantes de psicologia, psiquiatras e psicólogos em Vitória, fisgados pelo discurso psicanalítico de um passador da psicanálise a ponto de se organizarem e decidirem fundar a Associação Cultural Colégio Freudiano de Vitória que daria a base da nossa escola.
Isso não é qualquer coisa.
Mesmo ciente do quanto a escrita é castradora e que nem tudo cabe na palavra, nada nos impede de tentar juntar algumas para que nem tudo se perca ao vento do tempo.
Então, conversando no cartel da Secção Clínica sobre os 25 anos da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, e os 40 anos a partir da semente que deu origem a ela, demos início a algumas atividades para co-memorar essa data. Juntando pedaços de memória, e com a curiosidade desejável ao oficio do analista, nos propusemos a recolher daqueles a quem em algum momento suas histórias convergiram com a da escola.
Afinal, se não nos apropriarmos, cada uma sua maneira, da história que ajudamos a escrever, quem o fará?
Iniciou-se um trabalho de recolhimento de registros, atas, publicações e envio de um formulário eletrônico - tanto a atuais membros quanto àqueles que já não o são – para que pudessem ser escutados, e que uma pequena parte de suas memórias em relação à EPLV pudesse ser recolhida.
Constavam no formulário enviado as seguintes perguntas: “Como você conheceu a ELPV?”; “Qual o lugar de uma escola na formação do analista?”; “Qual o lugar da ELPV em sua formação?”, todas com espaço para que fosse dito o quanto quisesse e os retornos foram dos mais variados. Houve quem respondesse uma questão em uma página, e quem o fizesse em duas linhas. Também houveram silêncios e até quem respondesse sem saber que estava respondendo. Houve aquele que invés de escrever o próprio nome, escreveu “sim” - sim para a psicanálise. O lugar dos passadores da psicanálise se fez presente. Importantes significantes puderam ser ditos, repetidos e escutados, e mais que isso: registrados. Tal como os efeitos de transferência, ou o que coube na sobre ela palavra, fragmentos de “amódio” que farão parte da história dessa escola, registrados com a força das letras - da linguagem - a qual tanto nos debruçamos.
Ao contrário de uma foto de família feita em estúdio com todos bem vestidos e posando sorrindo, o intuito do projeto foi justamente recolher fragmentos de memórias, da forma como pudessem ser ditas, no um a um, no tempo de cada um. Inclusive com espaço para silêncios.
Na mitologia grega temos a história de Teseu e o Minotauro onde o herói ateniense foi a Creta lutar contra o monstro em um labirinto. Porém, apenas força e coragem, não foram o suficiente para vencer o desafio. Teseu precisou contar com a ajuda de Ariadne, filha do rei de Creta. Astutamente ela lhe entregou um novelo de lã. Assim, ele conseguiu sair do labirinto ao seguir o fio do novelo (VASCONCELLOS, 1998. pp. 24, 25).
Talvez de algum jeito, que precisamos inventar todos os dias, seja necessário aprender a deixar fios pelo caminho. Sabendo de onde viemos e assim podendo tentar, ainda que sem garantia de êxitos, mas com mais propriedade sobre nosso percurso, saber para onde estamos indo enquanto deixamos um fio de lã para os que chegarão. Esse é um fio que deixo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARGENTINA, 1985. Direção: Santiago Mitre. Roteiro: Ricardo Darín, Victoria Alonso, Stephanie Beauchef, Santiago Carabante, Chino Darín, Phin Glynn, Axel Kuschevatzky, Agustina Llambi-Campbell, Santiago Mitre, Federico Posternak, Ana Taleb, Cindy Teperman. Produção: La Unión de los Ríos, Kenya Films, Infinity Hill, Amazon Studios. Argentina, EUA, Inglaterra: Amazon Prime Video, 2022.
BLOCH. Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
FREUD, Sigmund. Contribuição à história do movimento psicanalítico (1914). In: Obras completas, volume 11 : totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir, elaborar (1914). In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia : (“O caso Schreber”): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga (1926). In: Obras incompletas de Sigmund Freud, Fundamentos da Clínica Psicanalítica, v.6) . Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
MAURANO, Denise. Por que não à regulamentação e à graduação de Psicanálise? In: Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória. Youtube. 06 mai. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=o7eEotGNMfQ>. Acesso em: 30 de abr 2023.
MEMÓRIA. Intérprete: Erreway. Compositor: GIACOMI Maria Cristina, FURMANSKI Silvio Oscar, NOVELLO Gustavo Ariel. In: Memória. Buenos Aires: Sony Music, 2004. cd, faixa 1 (4 min).
OCAMPO, Luis Moreno. Entrevista ao Programa Roda Viva. TV Cultura/Youtube. 27 fev. 2023. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8bvNbphx1pg>. Acesso em: 23 de abr 2023.
ORWELL, George. 1984 (1949). São Paulo : Companhia das Letras, 2009
STRASSERA, Julio Cesar. La acusación: lucimiento de un fiscal (1985). Proyecto Desaparecidos. Disponível em: <http://desaparecidos.org/arg/doc/secretos/fiscal02.htm>. Acesso em: 27 abr. 2023.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Mitos gregos. São Paulo: Objetivo, 1998.
[1] Tradução: O que é a história sem registro? / O que é a história sem memória? / Quem a conta? Quem a inventa? /Quem a esquece? Quem a apaga?
[2] de·can·ta·ção: (francês décantation) substantivo feminino: Passagem lenta de um líquido de um para outro recipiente, a fim de o separar das impurezas/"decantação", em Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
[Texto publicado originalmente na Revista Registros Psicanalíticos, publicada pela Escola Lacaniana de Psicanalise de Vitória, em 2023, disponível em nesse link]





