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  • Foto do escritor: Camila Scarpati Dias
    Camila Scarpati Dias
  • 4 min de leitura

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De vez em quando o diabo me aparece e temos longas conversas.

Em nada se parece com o que dizem dele: rabo, chifres, patas de bode e cheiro de enxofre. Cavalheiro de voz mansa e racional, bem vestido, apreciador de desodorantes finos, me surpreende sempre pela lógica dos seus argumentos. Nada de futilidades. Só fala sobre o essencial, estilo que aprendeu com Deus, nos anos em que foi seu discípulo. Percebi que era ele quando notei que trazia na sua mão direita o martelo e, na esquerda, a bigorna. Pois esta é a sua missão: martelar as certezas, ferro contra ferro, para ver se sobrevivem ao teste.

Já se preparava para dar a primeira martelada quando o interrompi:

– Que é isto que você vai bater? Acho que vai se partir em mil pedaços…

A coisa que estava sobre a bigorna me parecia feita de louça, um bibelô delicado e frágil, e lamentei que o diabo fosse esmigalhá-la.

– Não tenho outra alternativa – ele me respondeu. – É parte de uma aposta que fiz com Deus. Este bibelô delicado é o casamento. E você pode estar certo: não resistirá ao ferro do meu martelo!

Fiquei indignado que ele estivesse maquinando coisa tão perversa e passei ao ataque.

– Não é à toa que os religiosos dizem que você é o anti-Deus. Deus junta. Você separa! A sua bigorna já destruiu muitos lares!

Ele não tinha pressa. Descansou o seu martelo e me falou com voz imperturbada:

– Já estou acostumado às calúnias. Mas não existe coisa alguma mais distante da verdade. Se há uma coisa que eu desejo é um casamento duradouro, até que a morte os separe. Se ponho o casamento na bigorna é justamente para provar que a receita do Criador não funciona. A minha é muito mais eficaz.

Como o meu silêncio indicasse minha disposição em ouvi-lo, ele continuou a falar:

– Todo mundo sabe que, no início, eu era a mão direita de Deus. Estávamos de acordo em tudo. Ele mandava, eu fazia. Foi por causa do casamento que nos separamos. Até então trabalhávamos juntos. Quando Deus disse que não era bom que o homem estivesse só, e melhor seria que ele tivesse uma mulher, eu concordei. Quando Deus disse que esta união teria de ser sem fim, até a morte, eu aplaudi. Mas aí apareceu o pomo da discórdia. Para colar o homem na mulher, Deus foi buscar uma bisnaguinha de amor. Protestei. Argumentei:

– Senhor! Amor é coisa muito fraca, de duração efêmera! Quem é colado com o amor logo se separa!

Citei o poeta: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!” Amor é chama tênue, fogo de palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga. Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho… Amor é bibelô de louça. Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isto o amor é doloroso, está cheio de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar. Como construir uma relação duradoura com cola tão fraquinha? Por isto os casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de um outro amor. Qualquer tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as ilusões do amor.

– Foi aí que nos separamos – ele continuou.

– Não porque discordássemos que casamento deveria ser eterno. É isto que eu quero. Nos separamos porque não estávamos de acordo sobre o que é que junta um homem e uma mulher, eternamente. Deus é um romântico. Eu sou um realista.

– Qual foi então a sua proposta? Que cola deveria ser usada?- perguntei, perplexo.

– O ódio. – respondeu ele. – Enganam-se aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas. Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para a cama. Diferente do fogo da vela, o fogo do ódio é como um vulcão. Não se apaga nunca. Por fora pode parecer adormecido. No fundo, as chamas crepitam. A diferença entre os dois? O amor, por causa da liberdade, abre a mão e deixa o outro ir. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro, voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois, moendo-se mutuamente numa máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se nutrindo da infelicidade que pode causar no outro. As pessoas ficam juntas para se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de fazer o outro infeliz!

Com estas palavras ele tomou do seu martelo e voltou ao seu trabalho:

– Tenho de provar que eu, e não Deus, sou quem sabe a receita do casamento que só a morte pode separar.

Eu me persignei três vezes e compreendi que o inferno está mais perto do que eu pensava.


Rubem Azevedo Alves foi um psicanalista, educador, teólogo, escritor e pastor presbiteriano brasileiro. Foi autor de livros religiosos, educacionais, existenciais e infantis. É considerado um dos principais pedagogos brasileiros da história do Brasil, junto com Paulo Freire, um dos fundadores da Teologia da Libertação e intelectual polivalente nos debates sociais no Brasil.

Foi professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

 
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    Camila Scarpati Dias
  • 2 min de leitura

Um legado que a pandemia de COVID-19 já deixou foram novas palavras e termos no vocabulário, um dos mais populares é o tal “novo normal”.


Quanto tempo é necessário para que o normal seja substituído pelo “novo normal”?

Chamar de "novo normal", faz ser normal?

E o antigo normal? Onde foi parar?

Substitui-lo faz com que paremos de deseja-lo?

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A expectativa que a linguagem traz é de simplificação, inventa-se uma expressão, e espera-se que ela faça o trabalho de normalizar o estranho. E o pior, autoriza a cobrança que esse "novo normal" entre na moda.


No entanto, é muito pedir que com três meses de isolamento e mudanças bruscas em todos os aspectos da viva, seja privada, social ou profissional, as pessoas vistam a capa da nova normalidade e vivam suas vidas como se não houvesse um vírus que não se enxerga, para o qual não há vacina, e nem prevenção mais efetiva que a famigerada manutenção do isolamento social.


Isso não quer dizer que as pessoas não possam fazer o seu melhor para viver em meio a adversidade, se adaptando às novas formas de trabalho e também à higienização das compras. Ou ainda que busquem combinar a máscara com a roupa, e vivam da melhor maneira que puderem nos eventos feitos por vídeo chamada. Cada um dá encontra seu caminho para lidar com uma realidade tão dura e com tanta mudanças.


Mas isso não significa que precisem achar a adversidade normal. Ainda que nos adaptemos, é adverso, é estranho, e tudo bem ser.


O ser humano não é uma máquina como tanto queriam e até pensam alguns, onde basta mudar uma configuração, para que funcione de novas maneiras.

Não, não funcionamos assim. Temos limites, e precisamos tê-los e sabe-los.


O primeiro passo para lidar com os limites impostos pela situação vivida é reconhece-los.

Não adianta nega-los, eles existem, estão postos. Diante dessas limitações, nosso tempo nos convoca não que abracemos à força um estranho travestido de “novo normal”, mas sim, que reconheçamos sua estranheza, e a partir desse reconhecimento façamos o possível.


Fazer o possível em meio à uma adversidade é muito, mas é possível.

Fazer de uma pandemia, de uma ameaça real, normal, isso sim, é impossível.

 
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    Camila Scarpati Dias
  • 1 min de leitura

Dia 16/09 fui convidada pela professora Jorcy Jacob para realizar uma série de palestras sobre depressão, automutilação e suicídio para mais de uma centena de adolescentes de uma escola pública do Espírito Santo.


Foram quatro turmas onde falei sobre existir, sobre sofrer e sobre lidar com a dor. Mas mais do que falar, eu ouvi, usei o conhecimento deles, sobre as dores deles e como lidam com ela, para juntos, construirmos algo. E assim foi. O que era uma palestra virou uma roda de conversas e um turbilhão de sentimentos de todos os lados.


Com atividade pós conversa, os alunos deveriam escrever um texto sobre o assunto abordado. O resultado? P O E S I A.


É incrível o quanto de coisa está ali, guardadinha em silêncio e escondida atrás da tela do celular.


E ai, o que tem guardadinho ai dentro?




 

© 2019 por Camila Scarpati Dias. 

Espírito Santo, Brasil

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