A filha perdida - Reflexões sobre a obra de Elena Ferrante
- Camila Scarpati Dias

- 16 de nov.
- 7 min de leitura
Atualizado: 20 de nov.

Quando recebi a proposta de falar sobre a obra de Elena Ferrante e a relação mãe e filha mostradas no livro e depois no filme “A Filha Perdida”, confesso que não pude e nem quis conter o entusiasmo. Estudando nesse cartel um pouco do feminino, em especial a relação mãe a filha e a devastação que vem daí, falando muito nos efeitos dessa devastação na filha e na dificuldade de se separar dessa mãe, afinal de acordo com Freud em Conferências sobre a Feminilidade (1931):
O afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio dessa espécie pode tornar-se muito influente e durar toda a vida; pode ser muito cuidadosamente supercompensado, posteriormente; geralmente, uma parte dele é superada, ao passo que a parte restante persiste (FREUD, 1931/2016, p. 150).
Mas... e para uma mulher que se torna mãe, como isso pode ser devastador?
Elena Ferrante se propõe a falar sobre isso, fazendo uso da literatura e de um codinome. A adoção do codinome me chama muita atenção, principalmente em tempos em que o público e o privado se misturam, essa pessoa que se nomeia “Elena”, talvez não se mostre para dar conta de mostrar e dizer de algo quase indizível: questões relacionadas à maternidade sem filtros, recortes instagramáveis e romantizações.
A secção que fiz nas representações de suas palavras foi me ater mais ao livro que ao filme, e mais do que isso, mais a história de “Leda Mãe” e “Leda Filha” apresentada de forma não cronológica ao longo da narrativa, usando como recurso as lembranças surgidas de acordo com os desdobramentos das férias de Leda.
Profissionalmente falando, Leda é uma italiana, especializou-se em Literatura Inglesa, algo curioso, que para remete a não bastar a língua mãe, foi buscar algo em outro idioma.
Leda nasceu num “ambiente onde tios, pai, primos agiam com uma cordialidade prepotente” (FERRANTE, 2016, p. 30). Pouco é abordado a respeito do pai de Leda, apontando para o dizer de Lacan em O Aturdito, “a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai” (LACAN, 1972, p. 465). Já nas primeiras páginas a obra a relação conflituosa entre mãe e filha é apresentada por Ferrante:
[a mãe] se envergonhava da natureza rude do meu pai e dos parentes dele, queria ser diferente, fingia dentro daquele mundo, ser uma dama bem vestida e de bons modos. Mas ao primeiro conflito, a máscara caía e ela também aderia ao comportamento, à linguagem dos outros, com uma violência semelhante. Eu [Leda] a observava, surpresa e decepcionada, e planejava não se tornar como ela, tornar-se realmente diferente e demonstrar-lhe, desse modo que era inútil e ruim que ela nos assustasse com os seus ‘vocês nunca mais vão me ver’. Era preciso que ela mudasse mesmo, ou que realmente fosse embora da casa, que nos abandonasse, desaparecesse (FERRANTE, 2016, p. 30).
O movimento ou ameaças de desaparecimento da mãe, remetem a um fort da complexo, realizado mais na palavra do que na ação, mas não menos angustiante. A personagem se diz desejando que a mãe desaparecesse de vez, para assim parar de ser assustada pela ameaça de ausência. “Palavras podem ser extremamente benfajezas e podem ferir terrivelmente” (FREUD, 1926, 2017, p. 198).
Quais os efeitos recolhidos pela palavra, pela ameaça dessa mãe? A relação de Leda e sua mãe, ao longo da obra é mostrada repleta de conflitos, que não ficam menores quando num depois, quando já não apenas no lugar de mãe, mas também de avó, Leda vê sua mãe cuidando das filhas, das quais ela sim, se fez ausente em ato.
Ao se tornar mãe, de forma a princípio planejada, Leda se vê diante de questões da maternidade, com ideais construídos e tentativas de fazer diferente da mãe e de algum jeito conseguiu.
Enquanto sua mãe nunca estava disponível, Leda se fazia de boneca das filhas, ou pelo menos tentava, no entanto, esse lugar se apresenta como insustentável diante da rotina exaustiva e a tentativa de conciliar os papéis de mulher, mãe e profissional, ofertando-se ao que pensava ser o dever. No entanto, “entre a mãe e a mulher existe um hiato, aliás muito sensível na experiência.” (SOLER, 2003, p. 35) A idealização da “mãe boa” era tamanha que Leda caia por vezes no engodo de comparar sua maternagem justamente com mulheres que sequer eram mães, como Lucíllia.
Leda diz “Era só Lucília aparecer e imediatamente começava a encenar a mãe boa (FERRANTE, 2017, p. 93)” e então Leda se dedica a descrever minunciosamente os feitos - ou desfeitos de Lucíllia:
Os hábitos de autonomia que eu havia imposto a elas com tanta dificuldade, necessários para que eu conseguisse ter algum tempo para mim, eram eliminados em poucos minutos assim que ela chegava. Era só Lucillia aparecer e imediatamente começava a encenar a mãe sensível, fantasiosa, sempre alegre e disponível: a mãe boa. (FERRANTE, 2016, p. 93)
Esse trecho em especial chamou muita atenção tem tempos de redes sociais, onde entra em cena sujeitos que se colocam no lugar mestria sobre os mais diversos assuntos, inclusive sobre a maternidade. Quais os efeitos disso recolhemos na clínica? Será que um privado que vai ao público ainda é privado? O que a imagem postada diz do real?
Diante de tantos fantasmas, Leda afirmava “Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo para trás, na direção da minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.” (FERRANTE, 2016, p. 108)
Sobre o Gianni, marido de Leda, a obra traz: “Ele nunca acreditava que eu pudesse realmente ir embora sem as meninas” (FERRANTE, 2016, p. 124), fato intimamente ligado à sua relação com a própria mãe, de quem pretendida se distanciar, mas como nos diz Manuel de Barros (BARROS, 2016, p. 64) “tem mais presença em mim o que me falta”. Assim, Leda, ao ser mãe, de fato não faz como a sua, que ameaçava partir sem nunca realizar.
Leda então repete, recria a ausência materna com seu traço.
Partindo por três anos, sem ameaças, deixa as filhas Martha e Bianca aos cuidados do marido e que por sua vez delegou as filhas aos cuidados da avó materna. Durante esse período, Leda dedicava-se exclusivamente às suas paixões: a vida acadêmica e si mesma:
eu não podia dizer-lhe aos berros que já sabia de tudo sobre mim mesma, que estava com mil ideias novas, estudando, amando outros homens, apaixonando-me por qualquer um que me dissesse que eu era talentosa, inteligente, que me ajudasse a me testar” (FERRANTE, 2017, p. 123/124).
Após os três anos, Leda retorna e num só depois consegue elaborar sobre as filhas “eu as amava demais e achava que o amor por elas impedira que eu me tornasse eu mesma” (FERRANTE, 2017, p. 143), em um diálogo com aquela que durante a obra de certa maneira faz com suas lembranças venham à tona, Leda diz:
Eu estava como alguém que conquista a própria existência e sente um monte de coisas ao mesmo tempo, entre elas uma ausência insuportável (...) Percebi que não sou capaz de criar nada meu que pudesse realmente estar à altura delas (...) Voltei pelo mesmo motivo que me fez ir embora: por amor a mim mesma (...) Me senti mais inútil e desesperada sem elas do que com elas (...) Se tivesse tido azar, teria levado a vida toda para perceber. Mas tive sorte e demorei só três anos. Três anos e trinta e seis dias (...) Uma manhã descobri que única coisa que eu realmente desejava fazer era descascar frutas fazendo serpentes, enquanto minhas filhas me observavam, então comecei a chorar (FERRANTE, 2016, p. 144, 145).
Essas elaborações são verbalizadas num só depois, em conversa entre Leda e Nina, uma jovem mulher e mãe, que atrai o olhar de Leda e evoca nela questões relacionadas a maternidade e a feminilidade. Quando questionada por Nina se o que relatam como uma sensação de vertigem e náusea próprias da maternidade passa, que Nina consegue nomear como “Desnorteamento”, Leda elabora evocando a própria mãe: “Minha mãe usava outra palavra, chamava de despedaçamento” (FERRANTE, 2016, p. 146).
Pensando na teoria psicanalítica esse desnorteamento/despeçamento, poderiam ser lidos como um desnorteamento seguido de um despedaçamento de um ideal narcísico, “Que bobagem pensar que é possível falar de si mesmo aos filhos antes que eles tenham pelo menos cinquenta anos. Querer ser vista por eles como uma pessoa e não como uma função” (FERRANTE, 2016, p. 98). Leda, na obra de Ferrante ainda não fez cinquenta anos, tem quarenta e oito. Algo mirou nesse ideal de cinquenta anos, quando é possível ver a mãe como pessoa, mas que nem ela alcançou, afinal, no livro o nome da mulher que é sua mãe não aparece, tampouco de sua avó, ambas habitam a narrativa com suas funções. Já no filme, às menções à mãe de Leda são poucas.
Sendo assim, fica o questionamento, o quanto uma mulher precisa saber da história de sua mãe enquanto mulher, enquanto pessoa, para além da maternagem, para que talvez se permita ser ela mesma mais que uma função?
BARROS, Manuel de. Livro sobre nada (1996). Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
FERRANTE, Elena. A filha perdida (2006). Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
FREUD, Sigmund. Feminilidade: novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932). Rio de Janeiro: Imago , 1996c. Obras completas, v. 22.
LACAN, Jacques. O aturdido (1972). In: Outros escritos (pp. 449-497). Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
[Texto publicado originalmente na Revista Registros Psicanalíticos, publicada pela Escola Lacaniana de Psicanalise de Vitória, em 2023, disponível em nesse link]
A disponibilização dessas palavras faz parte de um exercício pessoal de compartilhar meus escritos ordinários, do dia a dia, no ponto em que estejam, sem revisões ou edições elaboradas. Apenas as palavras que consegui chegar para tentar chegar a algum lugar diferente de quando comecei a escrevê-las.
Talvez não sirvam para muita coisa, mas certamente me serviram para avançar e chegar a novos lugares.








Comentários