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Criando vazios

  • Foto do escritor: Camila Scarpati Dias
    Camila Scarpati Dias
  • 16 de nov.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 20 de nov.

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Boa noite a todos, venho hoje falar um pouco sobre o que tem me tocado nos estudos sobre a devastação, e especialmente a pergunta que fui construindo ao longo dos nossos encontros em Cartel: quais são os efeitos no corpo, na relação com os alimentos, dessa experiência (ou não) de

devastação, que se dá na relação entre a mãe e a filha?


Começo com que nos uniu a princípio: uma transferência de trabalho, embalada pelo filme “Sonata de Outono”, de Bergman. A partir daí nos debruçamos com nossas faltas sobre o que é a mulher? O que deseja? E como se dá isso que chamamos de feminino? Quais contornos vão se

dando na relação mãe e filha para que se forme ali uma mulher? As perguntas eram e continuam sendo muitas, mas algo vamos recolhendo pelo caminho.


Trazendo brevemente, quando falamos de sujeito, em psicanálise, falamos de um ser inserido no mundo da linguagem, e por ela, e para que essa inserção ocorra, se faz necessário a presença de um Outro. Em geral, quem ocupa esse lugar a priori é a mulher, na verdade, a mãe. O filhote de humano então vem ao mundo alienado ao desejo materno.


Em um primeiro tempo, a mãe tenta acertar o que é demandando a ela, enquanto a criança, faz o mesmo movimento, buscando manter-se ali no lugar de objeto (precioso) do desejo do desejo daquele sujeito, como nos diz Lacan no seminário 5. A relação que se estabelece então é linear,

entre um sujeito e um objeto.


O bebê se identifica especularmente com aquilo que é objeto de desejo de sua mãe. Mais adiante na formação do inconsciente, a figura do pai sai do campo do real e é pouco a pouco inserida no campo do simbólico, mediante convocação da mãe que é quem o instaura como aquele que porta a lei (LACAN, Sem. 5, p. 200). Assim, criança em lugar de objeto que outrora estava alienada ao desejo da mãe vai se deslocando rumo a um outro lugar. Lacan nos diz que “É a medida em que o objeto do desejo da mãe é tocado pela proibição paterna que o círculo não se fecha completamente em torno da criança e ela não se forma, pura e simplesmente, objeto do desejo da mãe”. (LACAN, Sem. 5, p. 210).


Se tudo correr como esperado, o caminho será esse. No entanto, me movimentei para o outro lado dessa história, onde me coloquei a pensar quais efeitos desse caminho, se não houver uma barreira, a existência de uma figura outra que separe essa criança do lugar de objeto do desejo da mãe, a auxiliando a sair de um lugar onde tudo que é almejado é ser desejo de desejo daquela mãe, devoradora.


E nesse ponto entra o caminho que trilhei, sobre os efeitos no corpo, na alimentação, que flerta com as questões como os transtornos de percepção corporal e anorexia, como uma manifestação desse desejo de separação. O que quer ser dito com o silencio barulhento da anoréxica, aquela que nega a própria nutrição para a manutenção de sua existência?


A anorexia ao contrário do que muitos pensam, não é um fenômeno recente. Ainda que seja justificado por muitos como efeito da mídia e valorização do magro na sociedade contemporânea, penso que não podemos negar que há algo no sujeito que permite que esse discurso “cole” nele. O que nos remete àquelas que ficaram conhecidas como as Santas Anoréxicas, um tema abordado por Cybele Weinberg, no livro “Do altar às passarelas”.

Tomo a liberdade de contar um pouco de história.


Um dos maiores exemplos da recusa à alimentação em outros tempos foi Catarina de Siena (1347-1380). Nascida em uma família de artesãos da Toscana, em sua biografia, seu pai, Giácomo de Benincasa é retratado como um homem “bondoso, trabalhador e compreensivo”. Já sua mãe, Lapa Piacenti é apresentada como “loquaz e mulher de pulso firme”.


Quando esta, decidiu providenciar um casamento para a filha Catarina, que aos 12 anos se recusava a cuidar da aparência. A mãe então envia a filha para a casa de sua irmã, para que esta lhe transmita algo do feminino.


No entanto, essa irmã, tia de Catarina, morre no parto, e a mãe de Catarina decide casa-la com o seu tio, marido da irmã que morrera. Catarina se recusa fortemente a esse movimento, cortando seus longos cabelos, e por isso sua mãe lhe pune de diversas maneiras. Ela negou o

matrimônio, até que aos 16 anos, quando o pai a viu rezando, se convenceu da vocação da filha e permitiu que ela se dedicasse a vida religiosa. Catarina então, casou-se com Deus. Decidiu unir-se a ordem das Mantelatas, “mulheres viúvas ou solteiras” em idade avançada, que

viviam em suas casas e não no convento, sob regras muito severas, inclusive de silêncio, dedicadas aos cuidados com os pobres e doentes”. Ela então comia somente um pouco de pão e ervas cruas, recorria a vômitos e flagelava seu corpo três vezes ao dia com uma corrente de ferro. Seu confessor, Raymond, traz o seguinte sobre suas práticas:


“Era um grande sofrimento para ela comer, mais do que seria para um faminto ficar sem comida”. Catarina, ditou em ainda sua última carta “Meu corpo não aceita alimento algum, nem mesmo uma gota de água, e [sofro] tantos doces tormentos corpóreos como nunca tive iguais, a ponto da minha vida estar por um fio”. Ao longo de sua história, Catarina de Siena tratou de a seu modo tentar de impedir que o Outro interferisse no seu desejo, foi assim com a mãe e o feminino na figura do matrimônio ou com as Mantelatas que a princípio negaram a ela pertencer a ordem, feito que ela só conseguiu depois de uma passagem ao ato. Essa atuação é uma resposta precária do simbólico, entretanto está na ordem de uma lógica fálica, na medida em que tenta fazer sobreviver seu próprio desejo. Catarina nos mostra que não come para não ser comida e nem devorada. Nesse ponto, entra em cena uma pergunta que elaborei ao longo dos nossos estudos: há algo desse feminino, dessa mãe, que faz com que o discurso da recusa alimentar tenha aderência na mulher?


E isso nos leva aos estudos do corpo em psicanálise. Sabemos que o corpo em psicanálise é para além de um corpo físico, desarticulado do psíquico, muito pelo contrário, o corpo entra como função de espelho, de refletir o que há naquele sujeito, seja pelas manifestações mais

exuberantes como as somatizações que apresentaram Freud ao Inconsciente, quanto ao corpo refletido no espelho diante de um sujeito que enxerga ali algo diferente do real, ou seja, as distorções de imagem. Outras vezes o corpo é o único lugar sobre o qual o sujeito em questão possui controle, e os casos de recusa alimentar podem ser entendidos

como episódios em que esse controle comparece.


No caso da anorexia, é percebido desde Catarina de Siena no século XIV, a presença de um corpo no discurso. Ao mesmo tempo em que ela refere-se a si, já não enquanto esse corpo que recusa o alimento (desassociado como sendo parte dela), alega sentir doces tormentos corpóreos. Destaco o uso do significante doce que remete justamente a alimentação, e indo além, ao que há de mais prazeroso, esperado e mesmo infantil, o doce, a sobremesa.


Vendo os corpos de anoréxicas crônicas chega a ser ingênuo pensar que se trata de estética ou mesmo de agradar à um Outro. O agrado, aparentemente, está em si. Catarina, assim como àquelas que recusam o alimento nos dias de hoje, diz da manutenção de um vazio, de uma falta,

ao preço que for. E por que essa falta é tão importante, e mesmo tão cara? Precisando inclusive de ser mantida pela via do real, no corpo, na carne (ou na falta dela)? Até agora, os estudos me permitiram chegar à um ponto em que quando a menina já faltosa por sua natureza está diante de um Outro muito devorador, ou sem apetite, os sintomas aparecem, e a anorexia é um deles.


Quando falamos do feminino e como ele vai se construindo, diz de uma interrogação mais do que uma afirmação. Tanto Malvine Zalcberg em sua obra “A Relação Mãe e Filha” quanto Tereza Nazar em “Você tem fome de que?” trazem que o feminino é algo transmitido de uma mãe para sua filha, no entanto, transmitido também por uma falta, posto que à essa mãe falta algo, falta essa carregada pelo próprio feminino e transmitida junto à feminilidade. Zalcberg, traz, citando Lacan, que A relação com o Outro materno permeia a subjetividade dessas jovens a partir do fato de a menina, mais do que o menino, ter dificuldade de superar a ligação original com a mãe, na qual se presencia com frequência a imagem da mulher idealizada que conteria o mistério da sua sexualidade.


Lacan, em Diretrizes para um Congresso sobre a Sexualidade Feminina, questiona quais são as vias da libido concedidas à mulher pelos fâneros anatômicos de diferenciação sexual? Que pode ser lido como: o que cabelos grandes e unhas diferenciadas concedem a essa mulher? Libido?

Feminilidade? Ou nada disso?


Diante dos mistérios que perpassam isso que chamamos de feminino, e dos encontros e desencontros da transmissão dele entre as gerações de mulheres de uma família, somos convocados a pensar quais as vias de escapar de um devoramento. Entendendo a devastação, como quando uma mulher não consegue se desconectar de sua mãe, permanecendo num lugar de objeto muito semelhante aos tempos iniciais do édipo, percebeu-se a recusa a alimentar como uma tentativa de permitir que a falta compareça, que o vazio se faça presente.


As perguntas seguem muitas, tal como os arranjos que o sujeito vai elaborando ao longo de seu caminhar, próprios do desejo de buscar, e quem sabe, saber algo.

E sobre desejo, voltando à recusa alimentar, podemos dizer que não é que não haja desejo, ele comparece o tempo inteiro, talvez enquanto o desejo possível de ser desejado numa relação de tamanha devoração: o desejo de nada.


LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5: As Formações do Inconsciente (1957–1958). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

LACAN, Jacques. Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina. In: ESCRITOS. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 734-745.

NAZAR, Teresa Palazzo. Você tem fome de quê? Três abordagens dos transtornos da alimentação. São Paulo: Companhia de Freud, 2013.

WEINBERG, Cybelle; Cordás, Táki Athanassios. Do Altar às Passarelas: da Anorexia Santa à Anorexia Nervosa. São Paulo: Annablume, 2006.

ZALCBERG, Malvine. A Relação Mãe e Filha. Rio de Janeiro: Campus, 2003.


[Texto produto do Cartel "Devastação: sonata do feminino" na Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, em outubro de 2020.]


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E sim, teve apresentação de Power Point meses antes, com os principais pontos em um Intercartéis


Texto escrito por mim, Camila Scarpati Dias, e apresentado junto ao Cartel "Devastação, Sonata do Feminino", na Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória, em 12/05/2021.

A disponibilização dessas palavras faz parte de um exercício pessoal de compartilhar meus escritos ordinários, do dia a dia, no ponto em que estejam, sem revisões ou formatações elaboradas.

Apenas as palavras que consegui chegar para tentar chegar a algum lugar diferente de quando comecei a escrevê-las.

Talvez não sirvam para muita coisa, mas certamente me serviram para avançar e chegar a novos lugares.

 
 
 

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© 2019 por Camila Scarpati Dias. 

Espírito Santo, Brasil

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